Vivemos em tempos de excesso. Excesso de conteúdo, de promessas, de produtos, de vozes, de possibilidades. Há alguns anos, estar presente já era diferencial. Hoje, a presença virou ruído. A velocidade da tecnologia — impulsionada sobretudo pela Inteligência Artificial generativa — transformou cada indivíduo em um potencial produtor de conteúdo, cada empresa em mídia e cada algoritmo em um editor invisível que decide o que chega até nós.
E o que parecia democratização virou desorientação.
De repente, nada parece 100% confiável. Vídeos, imagens, textos e até pessoas são postos em dúvida. A estética perfeita nos faz hesitar. A promessa genérica nos faz recuar. A ausência de autoria nos paralisa.
Esse é o “Custo das Hesitações” de que fala o relatório Accenture Life Trends 2025. Um custo silencioso, mas real. Um delay entre a oferta e a escolha. Uma fricção crescente entre marcas e consumidores, entre criadores e audiência, entre instituições e sociedade.
Segundo o mesmo relatório, 62% dos consumidores afirmam que a confiança é mais importante do que o preço. E mais da metade diz que já não sabe se o que vê online é real. Em paralelo, o Edelman Trust Barometer mostra que a confiança institucional está em queda — sobretudo em governos e mídias tradicionais — e que as pessoas buscam agora fontes mais próximas, mais humanas e mais consistentes para tomar decisões.
Esse cenário nos leva inevitavelmente a uma conclusão: a confiança se tornou um filtro mais importante do que o conteúdo em si. E é aqui que entra a figura do curador.
A era da curadoria: quem escolhe por você?
Curadoria não é mais um ato estético. É uma função estratégica. E, cada vez mais, uma responsabilidade institucional.
Se antes o curador era alguém que organizava uma exposição ou uma playlist, agora ele é quem organiza o sentido num mar de opções — no consumo, na informação, na formação ou no próprio cotidiano. Em um mundo em que tudo é acessível, o verdadeiro diferencial passa a ser saber o que vale a pena acessar.
Empresas de consultoria, por exemplo, ganham uma nova camada de relevância. Mais do que entregar diagnósticos e estratégias, elas passam a operar como curadoras de decisões complexas. Elas leem o excesso de dados, validam o que importa, apontam riscos invisíveis, traduzem sinais de mercado e selecionam os caminhos mais coerentes com o futuro — e isso gera confiança em um ambiente onde errar custa caro e decidir rápido é necessário.
Da mesma forma, instituições formais de ensino — que por muito tempo disputaram espaço com plataformas de cursos rápidos e microcertificações — começam a retomar seu papel como curadoras de formação real. Num momento em que o conhecimento pode ser copiado, automatizado ou simulado, o que ganha valor é a curadoria de fundamentos, de ética, de repertório e de pensamento crítico. A profundidade, antes descartada por parecer lenta, volta a ser um diferencial.
A explosão de oferta exige filtros cada vez mais humanos
A hesitação do consumidor não é só sobre o que ele lê. É sobre o que ele compra, assina, consome, compartilha, segue. O fenômeno da hiperoferta não se restringe à informação: ele está em todos os mercados. Nunca houve tantas marcas de cosmético, tantas opções de planos de saúde, tantos cursos online, tantas fintechs, tantas soluções para tudo.
O que era escassez virou excesso. E o excesso exige um novo tipo de inteligência: a inteligência da escolha.
Escolher exige tempo, energia e segurança. E, diante da sobrecarga, o consumidor transfere essa escolha para quem ele confia. É por isso que a curadoria está no centro do novo ciclo de valor.
Mas a curadoria verdadeira exige algo em que poucos estão dispostos a investir: tempo, reputação e coerência. Ser curador é abrir mão da neutralidade. É fazer escolhas. E escolhas implicam riscos. O curador transfere parte do seu capital simbólico para validar o que apresenta — e isso não se constrói em uma campanha, nem em um trimestre, nem com IA.
Quem sustenta a confiança?
A próxima vantagem competitiva não será de quem tiver o melhor algoritmo, mas de quem for reconhecido como um bom editor da própria proposta de valor.
A marca que sabe o que não vende. A consultoria que orienta o cliente a não agir. A universidade que atualiza o currículo sem seguir modismos. O influenciador que posta menos — mas com mais densidade. Esses serão os novos pontos de confiança.
E, nesse novo mundo, a hesitação se torna um indicador estratégico. Onde as pessoas hesitam, há um vazio de confiança. Onde há vazio de confiança, há oportunidade para construir reputação.
A confiança não se escala — ela se cultiva
A tentação de resolver a crise de confiança com mais volume, mais IA e mais otimização é compreensível, mas equivocada. O caminho não é sobre escalar presença. É sobre cultivar presença confiável.
Isso significa priorizar clareza, autoria, consistência. Significa editar mais, publicar menos. Significa parar de empurrar conteúdo e começar a organizar sentido.
Enquanto o mundo corre atrás de velocidade, quem construir confiança estará construindo relevância. E relevância é o único ativo que ainda sobrevive à próxima grande onda de transformação.
Quero ser um curador. Como começo?
Por fim, em um mundo saturado de conteúdos, o curador é quem escolhe com critério, filtra com responsabilidade e conecta saberes com propósito. Se você quer ser esse tipo de profissional, comece com três princípios:
1. Cultive um repertório profundo
Curadores não apenas consomem conteúdos — eles constroem uma visão crítica e contextualizada. Leia clássicos e tendências. Volte ao básico. Estude o que sustenta o que está na moda. Saiba o que é ruído e o que é sinal.
2. Desenvolva uma bússola ética e cultural
Curadoria é poder: o de escolher o que entra ou sai de cena. Por isso, ela exige responsabilidade, sensibilidade às pluralidades e consciência de impacto. Não basta escolher o melhor — é preciso escolher com intenção.
3. Pratique o ofício da seleção e da articulação
Não espere ter todas as respostas. Comece selecionando o que você acredita que importa, conecte ideias, crie sínteses, compartilhe com clareza. Ser curador é construir confiança. E confiança se ganha com consistência e generosidade.
Em tempos de excesso, a autoridade não nasce da quantidade de seguidores, mas da capacidade de filtrar, traduzir e organizar o que importa. Você não precisa de um cargo para ser curador — precisa de repertório, critério e presença. E isso começa agora.
Carolina Cândido é consultora na Gouvêa Consulting.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Envato

