Vamos à contabilidade brasileira de prêmios do Festival Internacional de Publicidade de Cannes deste ano, que acaba de acontecer? O Brasil teve uma performance histórica no Festival Cannes Lions 2025, alcançando seu melhor resultado em uma década: foram 107 Leões conquistados, um a menos que o recorde de 2015.
Entre os destaques, estão 6 Grand Prix, os prêmios máximos de cada categoria, em um universo de mais de 30 disputadas; e um raro Leão de Titanium, entregue apenas a campanhas que rompem todas as barreiras criativas e se destacam acima de todos os outros trabalhos do festival.
Como coroação, o Brasil recebeu da organização do Cannes o inédito título de “País Criativo do Ano”, uma honraria que celebra décadas de conquistas da publicidade brasileira e o talento de profissionais que moldaram nosso legado, como o de Washington Olivetto, homenageado textualmente na edição.
Mas, nem por isso, a imagem de nosso país foi glorificada (talvez, sequer invejada). Ao contrário, tivemos novamente (e vergonhosamente) nossa reputação e imagem manchadas e, por que não dizer, ridicularizada, graças a um costumeiro jeitinho brasileiro de fazer propaganda: a produção de (poucas, é verdade) campanhas fantasmas. Ou seja, aquelas que só são feitas para ganhar prêmio.
Embora não seja uma prática exclusiva do Brasil, já que, em muito menor escala, o mundo todo recorre a esse tipo de artifício na disputa por prêmios, é inegável que, no lado mais sombrio da criatividade, somos quase hors concours, com décadas de protagonismo nessa zona cinzenta da história do festival.
Num ano especial, temos um fantasma também especial; agora com IA
Em tempos em que a Inteligência Artificial invade todas as categorias de negócios, seria natural imaginar o Brasil liderando as conversas sobre seu uso na criatividade dentro do festival. Afinal, estamos entre os três países mais influentes do setor no mundo.
Mas, em vez de protagonizar o debate, acabamos figurando como exemplo do que não fazer. Não puxamos a discussão; fomos puxados por ela, de forma reativa e constrangedora, como alvo de um possível mau uso da tecnologia em busca de prestígio criativo. Entramos no tema não pela porta da frente, mas como caso de exceção, tropeçando no que poderia ter sido uma liderança.
Uma denúncia anônima enviada à organização do festival levantou suspeitas de manipulação de fatos no videocase de uma das campanhas brasileiras, supostamente produzida com o auxílio criativo da Inteligência Artificial.
A peça teria recorrido à IA para realizar edições enganosas, depoimentos deslocados de um TED Talk e trechos fora de contexto, acendendo um alerta no júri e iniciando um debate mais profundo sobre desinformação, ética no uso da IA e os limites (ou a ausência deles) da criatividade quando o objetivo é conquistar um Leão a qualquer custo.
Coincidentemente (ou não), os dois projetos brasileiros que se tornaram alvo de questionamentos no festival foram criados pela mesma agência, a DM9: um deles para a empresa de biotecnologia OKA Biotech e o outro para a Consul, conhecida marca de eletrodomésticos, que se retirou da discussão, terceirizando totalmente a responsabilidade para a agência.
Ambos os casos levantaram suspeitas de serem peças fantasmas (lembrando que o caso da OKA não esteve relacionado ao uso de IA) ou, no mínimo, terem suas informações manipuladas para fins de competição.
Vale dizer: as ideias são brilhantes; ninguém questiona sua potência criativa. Prova disso é que ambas conquistaram Leões e, no caso da campanha da Consul, mesmo sob suspeita de uso indevido de Inteligência Artificial no videocase, o trabalho chegou a receber o Grand Prix na categoria Creative Data. Até a finalização deste texto, as investigações estavam em andamento e poderiam, inclusive, resultar na perda do prêmio. A ideia é realmente fora de série.
Como aponta meu sócio Fernando Campos, CEO da Santa Clara e profissional de criação há 35 anos, em seu texto sobre o assunto no LinkedIn, “os profissionais do nosso segmento criam eufemismos para justificar a produção de fantasmas: são trabalhos paralelos, inéditos ou ainda proativos”. A tristeza deste comentário não está apenas na realidade dos fatos descritos, mas no fato de que o texto a que me refiro foi escrito e publicado em 2012, quando Campos ainda era presidente do Clube de Criação. Ou seja, de lá para cá, nada mudou.
Um ecossistema que se alimenta do nada
A presidente do CENP (Fórum da Autorregulação do Mercado Publicitário), Regina Augusto, que esteve presente no evento deste ano, deixa claro o “gosto amargo e o avanço desastroso dos limites éticos” de nossa categoria. Ela corrobora meu cansaço sobre o assunto e comenta: “Se tiver algo que posso acrescentar, é que já passamos há tempos da fase que separa meninos de homens no nosso mercado.”
Haverá quem diga que este texto é exagerado, que não reflete a realidade do mercado. Tudo bem. Cada um convive com o nível de lisura que considera aceitável e carrega, também, o legado que está disposto a deixar na própria trajetória.
Recentemente, escrevi um artigo sobre a síndrome do impostor que existe dentro de nós, e não por acaso esse tema me parece inquietantemente próximo ao que vemos aqui.
Muitos dos profissionais que criam cases mirabolantes para jurados de festivais podem estar querendo compensar suas inabilidades diante de briefings reais, com problemas reais e, como diz meu sócio, sentem-se limitados, quase ofendidos, com eles, como se a realidade atrapalhasse seu voo de criatividade.
No fim das contas, o problema não está só na peça falsa, mas no sistema inteiro que gira em torno dela. Um ecossistema bem alimentado por vaidade, dinheiro e autoengano. Nada justifica o vale-tudo criativo para ganhar prêmios, mas é impossível ignorar que existe uma engrenagem bem azeitada lucrando com cada Leão: festivais que cobram caro por inscrições, anunciantes seduzidos pela ilusão de que a genialidade premiada se traduzirá em mágica para os seus negócios, e criativos que usam os troféus como moedas de valorização no mercado global. Para muitos, fazer um case fantasma é como fabricar um NFT de si mesmo: uma peça única, inflada, inegociável; uma versão anabolizada que vale mais do que o trabalho real.
Essa engrenagem também alimenta egos. A vaidade criativa, quase sempre disfarçada de inquietação estética ou desejo de experimentação é, muitas vezes, o GPS emocional que desvia da ética e ainda convence o condutor de que está no caminho certo. Mas o sistema começa a mostrar sinais de desgaste. A denúncia anônima que abalou o Grand Prix da DM9 não surgiu no vácuo. Alguém, em algum lugar, se incomodou. Não sabemos se por indignação ou por inveja, e talvez isso nem importe. O que importa é o desconforto: a fagulha que pode reabrir o debate sobre o que, de fato, estamos premiando.
Ulisses Zamboni é chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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