O novo varejo chinês está deixando de ser um fenômeno remoto para se tornar uma realidade física e visível nas ruas dos Estados Unidos. Nos últimos dois anos, mais de 40 lojas de marcas chinesas foram inauguradas em bairros estratégicos do país norte-americano. Ele já caminha pelas ruas de Manhattan, ocupando pontos comerciais icônicos e disputando a atenção — e o bolso — do consumidor americano com uma combinação única de design, tecnologia, cultura pop e velocidade operacional. Mas entre todas essas marcas, duas em especial sintetizam a nova força do consumo made in China: Pop Mart e Luckin Coffee.
A Pop Mart talvez seja hoje o maior símbolo da transformação do varejo de brinquedos no mundo. Mais do que uma marca, tornou-se uma máquina de criação de desejo com alcance global. Seu personagem mais famoso, o Labubu, virou um fenômeno cultural comparável (ou superior) à Barbie, aos Transformers ou à Marvel em termos de apelo entre jovens adultos. Em 2023, a Pop Mart gerou mais de US$ 1,1 bilhão em receita, com margens impressionantes, construídas em cima de uma lógica simples e poderosa: colecionáveis premium vendidos como surpresas, em caixas lacradas, o famoso modelo “blind box”, e marcas e personagens com storytelling e capacidade de viralização da nova era digital.
O impacto nos Estados Unidos foi imediato. Nas lojas físicas recém-inauguradas em Nova York, turistas e residentes enfrentam filas de mais de uma hora para garantir seus bonecos, participar de sorteios de edições raras ou simplesmente vivenciar a experiência de compra gamificada. Cada loja é também um centro de comunidade e engajamento: QR Codes direcionam para grupos fechados, onde os fãs compartilham coleções, trocam peças e recebem notificações de novos lançamentos. A Pop Mart ultrapassou Hasbro e Mattel juntas em valor de mercado e na percepção de exclusividade entre consumidores jovens. E isso, vindo da China, muda toda a equação do que se entende por “soft power de marca”.
Se a Pop Mart representa o lado lúdico da nova China, a Luckin Coffee personifica sua capacidade de escala, eficiência e reinvenção. Fundada em 2017, a cafeteria digital bateu a Starbucks em número de lojas na China em menos de cinco anos. Hoje, opera com mais de 16 mil unidades, cerca de 4 mil a mais que a rival americana no mesmo território. Em 2023, registrou US$ 2,2 bilhões em faturamento, com crescimento acelerado e margens em franca recuperação. Tudo isso após um escândalo contábil em 2020 que teria derrubado qualquer marca ocidental. A Luckin não apenas sobreviveu, mas ressurgiu com mais foco, mais tecnologia e uma proposta de valor ainda mais afiada.
O segredo está na operação centrada no app. Mais de 99% das vendas passam pelo aplicativo, que permite pedidos antecipados, descontos dinâmicos, cupons personalizados, sistema de pontos e gestão de fidelidade em tempo real. A Luckin criou um modelo de café de conveniência premium, com velocidade de atendimento, personalização das bebida e preço competitivo. Além disso, aposta forte em colaborações com grandes propriedades intelectuais: de K-pop a Sanrio, de Pokémon a seriados locais. Cada collab vira uma campanha viral e gera longas filas nas lojas e milhões de menções nas redes sociais.
Esse impacto foi sentido diretamente pela Starbucks. Após duas décadas de crescimento relativamente tranquilo na China, a rede americana viu sua liderança ser desafiada em todos os pilares: número de lojas, engajamento digital, preço médio, volume de vendas e inovação de produtos. A Starbucks passou a perder market share e a adotar táticas até então impensáveis, como promoções-relâmpago e reformulação de seu app para tentar conter o avanço da rival chinesa.
Agora, a Luckin Coffee inaugura sua primeira loja nos Estados Unidos — no Brooklyn, Nova York — no coração do “inimigo”. E não vem como cópia, mas como novidade que nasceu do outro lado do mundo. Mais eficiente, mais rápida, mais tecnológica e com um histórico recente de superação que chama a atenção do mercado financeiro e dos consumidores mais jovens. O movimento é simbólico: a marca que tirou a coroa da Starbucks na China agora avança sobre seu território original.
Essas duas marcas representam o novo capítulo da internacionalização do consumo chinês. Mas não estão sozinhas. Outras marcas bilionárias como Heytea e Chagee ampliam suas operações globais com propostas premium no setor de bebidas. A Miniso, já presente no Brasil, avança no varejo de design acessível e alto giro de produtos. E redes como Neiwai, Urban Revivo e Laipic expandem no segmento de moda e lifestyle com uma estética própria, atendimento de alta qualidade e estratégias digitais importadas do ambiente chinês.
Vale lembrar que o avanço do varejo físico chinês nos EUA começou há mais tempo. Marcas como Haidilao, rede de hotpot com mais de 1.300 unidades, e Din Tai Fung, referência global em dumplings, já operam no mercado americano com sucesso e são consideradas benchmarks de excelência operacional e experiência de marca. Elas pavimentaram o caminho que agora está sendo percorrido com mais ousadia e escala.
No centro de tudo isso está uma estratégia comum: o private domain traffic. Marcas como Perfect Diary e Florasis já mostram o poder desse modelo. Elas combinam comunidades próprias (mais de 30 milhões de consumidores ativos somados), taxas de recompra acima de 60% e mais de US$ 1,3 bilhão em vendas por canais privados. A lógica é simples: capturar o consumidor em um canal proprietário (como grupos de WeChat), nutrir o relacionamento com conteúdo, exclusividade, cupons e interação constante — e reduzir drasticamente a dependência da mídia paga.
Esse modelo já começa a ser adaptado ao Brasil. O WhatsApp, com sua penetração quase total no mercado nacional, oferece ferramentas para replicar essa lógica. Marcas como Shopee, Ruby Rose e Océane testam grupos VIP, transmissões de ofertas e atendimento personalizado. O Atacadão das Maquiagens já reporta a triplicação da taxa de recompra após implementar sua estratégia de canais próprios via WhatsApp.
Estamos no início de uma nova era. O consumidor do futuro será atendido em um ponto físico, engajado por um canal digital direto, fidelizado por recompensas e mantido pelo relacionamento. A China já entendeu isso e agora testa esse modelo, fisicamente, nos EUA. O Brasil, como de costume, será o próximo grande laboratório.
A pergunta para as marcas brasileiras não é se a China vai influenciar seu mercado — ela já o está influenciando e, em breve, irá competir conosco no nosso próprio território.

