Vivemos tempos de intensa disseminação de versões da realidade, moldadas ao sabor de visões individuais, ideológicas ou por grupos de referência. O fato em si passa a ser apenas o ponto de partida para interpretações que buscam servir a propósitos, crenças ou conveniências.
Episódios globais recentes são exemplos eloquentes dessa dinâmica, como a guerra de taxações iniciada pelo presidente Donald Trump e seus desdobramentos nas cadeias globais de comércio. Ou os conflitos em Gaza e na Ucrânia, cujas versões variam conforme o interesse de cada potência envolvida. Ou ainda os ataques a barcos pelos Estados Unidos no Caribe. E sempre narradas de formas distintas por cada parte, cada mídia e cada algoritmo.
Da mesma forma, em escala local, a forma como são tratados episódios de segurança pública, como as recentes operações no Rio de Janeiro, ou as tensões políticas e ideológicas que se acirram à medida que o Brasil se aproxima das eleições presidenciais de 2026, seguem o mesmo roteiro: mais do que relatar os fatos, cada lado tenta construir sua própria versão do real.
A busca pela informação pura, justa e factual embasada em dados concretos, verificáveis e quantitativos, vem sendo relegada a círculos cada vez mais restritos.
Na arena pública, especialmente nas redes sociais, impera a versão pronta para consumo rápido, emocional e massificado. Nessa lógica, o que importa não é de fato o que aconteceu, mas o que pode ser feito acreditar que aconteceu.
E é nesse contexto que a verdade — essa noção essencial para a convivência civilizatória e para a formulação de políticas, decisões e estratégias — se torna a grande vítima.
Vivemos uma intensa disputa de narrativas que reinterpreta a realidade em busca da versão que melhor se ajuste às teses, agendas ou interesses momentâneos. O problema é que nesse processo perde-se a capacidade de análise isenta, racional e construtiva que é substituída por paixões, polarização e ruídos.
Alguns exemplos recentes ilustram de forma dramática o quanto essa guerra de narrativas pode comprometer a compreensão equilibrada dos fatos. Ao distorcer percepções, ela influencia decisões empresariais, financeiras, políticas e sociais, afetando desde o comportamento da economia, de consumidores até o humor dos mercados e a própria estabilidade institucional.
O próprio shutdown nos Estados Unidos neste momento – o maior da história do país – pode ser analisado de diversas formas. O impasse no Congresso na aprovação dos gastos nas agências federais espalha consequências de toda natureza afetando diretamente milhões de pessoas por lá e nos escritórios dos EUA pelo mundo.
Diretamente são perto de 1,4 milhão de pessoas, ou suspensos sem trabalhar nem receber, ou trabalhando sem receber até que se resolva o problema. E indiretamente muitos milhões afetados pela suspensão de serviços de toda sorte e seus impactos nas mais diversas áreas.
Qual a verdade real que está por trás da disputa entre democratas e republicanos envolvendo esse tema que determina esse quadro dramático na maior economia do mundo?
Confiança no mundo atual é fator crítico
O desafio que se impõe é o de resgatar a confiança na informação qualificada e na análise fundamentada — atributos que se tornaram bens escassos e, por isso mesmo, estratégicos.
Mais do que nunca é preciso cultivar a capacidade de discernir entre fato e versão, entre evidência e opinião, entre o que é dito e o que é verdadeiro. Em particular em tempo de massificação da comunicação nas redes sociais.
Governos, Instituições, empresas, entidades e lideranças precisam compreender que, em tempos de excesso informacional e déficit de credibilidade, o ativo mais valioso é a confiança — e ela nasce da coerência entre discurso, prática e dados.
Nesses novos tempos, a verdade não se impõe. Ela é construída com transparência, rigor e propósito. É um trabalho contínuo e coletivo de construção de credibilidade em meio ao ruído.
Talvez este seja um dos grandes desafios do nosso tempo: restaurar o valor da verdade como fundamento de convivência, desenvolvimento e liderança. Porque, quando tudo se torna narrativa, importante diferencial competitivo é enfrentar o turbilhão de informação e a coragem de sustentar os fatos, mesmo quando eles contrariam as conveniências.
Vale refletir. E, principalmente, praticar.
Marcos Gouvêa de Souza é fundador e diretor-geral da Gouvêa Ecosystem e publisher da plataforma Mercado&Consumo.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: ChatGPT