A Inteligência Artificial vem revolucionando a comunicação, a publicidade e o marketing com uma velocidade impressionante. Ela tem o potencial de redefinir a narrativa humana, não apenas simplificando processos, mas também amplificando a voz criativa e a inovação. No entanto, esse uso acelerado e, por vezes, desmedido, pode abrir caminho para jornadas perigosas. Narrativas falsas, campanhas artificiais e representações distorcidas da realidade podem emergir facilmente se o princípio ético não for o guia fundamental.
A questão ética na utilização da IA deve partir do pressuposto de que a tecnologia, por si só, é inerentemente neutra: não possui intenção ou moralidade. Quem define seu impacto é quem a utiliza. Por isso, torna-se imperativo que cada interação com a IA esteja ancorada em valores sólidos: transparência, justiça e responsabilidade. Não basta apenas dominar a ferramenta; é necessário humanizá-la.
Em áreas como publicidade e marketing, em que a urgência por resultados pode superar a reflexão, a cautela é ainda mais essencial. Uma história contada ao público deve ser autêntica, refletindo a verdade e os valores da marca. Quando isso não acontece e a IA é usada como subterfúgio para encobrir a realidade, o dano à confiança pode ser irreparável.
Assim, o caminho para um uso consciente da Inteligência Artificial reside na elevação da nossa própria consciência. Antes de apertar “iniciar” em qualquer programa ou criar qualquer campanha, precisamos nos perguntar: esta ferramenta está sendo usada para construir ou para manipular? Para inspirar ou para enganar? Estou buscando servir ou amaciar o meu ego? O futuro da comunicação depende dessa reflexão constante.
Por mais que a Inteligência Artificial ofereça ferramentas impressionantes, é inegável que seu uso levanta questões complexas. Como regular sua utilização de forma responsável? Como garantir que os valores éticos sejam preservados sem comprometer a criatividade e a inovação? É nesse campo nebuloso que reside o maior desafio: alinhar o potencial transformador da tecnologia com os princípios fundamentais de transparência e ética.
Campanhas podem ser criadas em segundos, vozes podem ser simuladas, imagens hiper-realistas substituírem locações e modelos reais. O potencial criativo é imenso, mas o risco ético também. A tecnologia é apenas uma ferramenta. Já o uso que fazemos dela, não, E é nesse uso que mora a essência da responsabilidade corporativa.
Vou usar como exemplo, o caso amplamente noticiado da agência DM9 no Festival de Cannes Lions de 2025, com campanhas construídas com IA, mas inscritas e celebradas como se fossem experiências reais, que servem como um alerta sobre um ponto cada vez mais urgente: a ética na comunicação na era da Inteligência Artificial.
Não quero aqui focar no caso específico, já muito abordado por veículos especializados e amplamente comentado no LinkedIn. Mas ele ilustra uma prática, infelizmente, comum: diante de uma crise, a primeira reação das empresas, que ainda praticam um capitalismo apenas para o acionista, é buscar um culpado mais próximo, demitir alguém e tentar seguir em frente, como se a responsabilidade não fosse da empresa, do CEO, do Conselho e até mesmo dos acionistas.
Nesse caso específico, será que o criativo fez tudo sozinho? Não compartilhou com seus pares, superiores e com o próprio cliente? Quem aprovou a campanha? Quem aprovou levá-la ao Festival de Cannes, quem subiu no palco para receber o prêmio em nome da agência? Não sabemos, até porque não temos todas as informações. Por isso, sempre lembro que devemos ter empatia e com compaixão. Mas a DM9 sabe.
Cultura de responsabilização x cultura da consciência
Na lógica do capitalismo tradicional, que prioriza os interesses dos acionistas acima dos demais stakeholders, é comum, ainda que lamentável, que a solução mais rápida para uma crise de reputação seja cortar cabeças. Demitir o criativo. Depois, o CCO. E seguir o jogo. Mas será que essa é a forma mais responsável, ética e sustentável de lidar com o erro?
No capitalismo consciente, acreditamos em outro caminho. Um caminho onde o negócio é bom quando cria valor para a sociedade e o planeta. Onde é ético quando é baseado em trocas voluntárias e transparentes; onde é nobre porque eleva a dignidade humana e heroico, quando promove prosperidade para todos; e onde, principalmente, o lucro é consequência de um propósito maior que leva a uma atuação justa, íntegra e consciente, e não o único objetivo.
A transparência como ato de coragem e liderança
Quando uma empresa comete um erro — seja uma campanha fabricada, uma IA usada de forma opaca ou uma promessa não cumprida — o que se espera é que ela assuma sua responsabilidade institucional. Que diga: “Nos desculpe. Fomos nós. Erramos. Vamos corrigir.” Isso não a enfraquece — ao contrário, fortalece sua legitimidade e a confiança dos stakeholders.
O CEO da empresa, ao assumir publicamente um erro, toma para si a responsabilidade e reconhece a sua vulnerabilidade, que não é uma debilidade, mas, acima de tudo, uma habilidade.
Volto ao caso da DM9. Na sequência, a agência publicou no LinkedIn, que realizou uma auditoria e identificou mais três campanhas premiadas no festival. Agora, aparecem mais campanhas e outros festivais que seguiram um padrão semelhante. A justificativa foi que “apresentaram inconsistências graves relacionadas à veracidade ou legitimidade dos trabalhos apresentados”.
Apesar de importante, essa atitude, isso deve abrir caminho para uma revisão dos valores da empresa. E, claro, a situação deveria ter sido evitada, mas, agora, é olhar para frente e corrigir.
Quando uma empresa comete um erro, seja uma campanha fabricada, uma IA usada de forma opaca ou uma promessa não cumprida, o que se espera é que ela assuma sua responsabilidade institucional. Que diga: “Nos desculpe. Fomos nós. Erramos. Vamos corrigir.” Isso não a enfraquece. Ao contrário, fortalece sua legitimidade e a confiança dos stakeholders.
Esse cenário levanta uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de uma governança corporativa robusta e transparente, especialmente em tempos em que a tecnologia avança mais rapidamente do que as atitudes das empresas.
Quando empresas se deparam com dilemas éticos provocados pela utilização de inteligência artificial ou outras ferramentas inovadoras, cabe aos líderes pensar além de sua reputação imediata e focar na construção de um legado sustentável.
A gestão responsável da tecnologia não se resume a identificar culpados ou remediar falhas. É um convite a repensar valores corporativos e incentivar uma cultura de consciência que permeie todos os níveis da organização. Tal atitude não apenas fortalece a confiança entre a empresa e seus stakeholders, mas também pode redefinir padrões de mercado e inspirar concorrentes a adotar práticas mais éticas.
A falta de transparência ou a perpetuação de práticas opacas são sintomas de fragilidades que vão além do erro pontual, expondo falhas estruturais. Assim, é imperativo que as empresas invistam em mecanismos que promovam um alinhamento contínuo entre inovação e ética, transformando os desafios em oportunidades para liderar com responsabilidade.
Podemos fazer as coisas por convicção, mais barato e proativo; por compliance, mais caro e reativo; ou por constrangimento, muito mais caro e imperativo. Mas o fato é que precisamos fazer.
Esse tipo de conduta revela mais do que um erro pontual. Ela expõe uma falha sistêmica de governança. E é justamente aí que entra o “G” do ESG, muitas vezes negligenciado em favor do “E”, do ambiental, e do “S” do social. A governança é a base. Por isso, acredito que deveria ser GSE. Sem ela, a empresa é apenas um castelo de areia.
IA e comunicação: é preciso estabelecer novos pactos éticos
Estamos diante de um novo paradigma.
A ascensão da Inteligência Artificial generativa e outras tecnologias correlatas está transformando profundamente o modo como nos comunicamos, criamos e conduzimos negócios. Contudo, com essa evolução, emerge um novo paradigma que exige um equilíbrio delicado entre o entusiasmo pela inovação e a necessidade de responsabilidade ética.
Esse paradigma não se limita a ter plataformas cada vez mais capazes, mas sim a entender os impactos sociais, culturais e econômicos da IA. Empresas conscientes devem ser pioneiras em estabelecer diretrizes que vão além do mero cumprimento de regulamentações. Aliás, leis e regulamentações dizem o que se pode ou não fazer, mas valores dizem o que se deve fazer — e há uma enorme diferença entre fazer o que é permito e fazer o que é certo. É necessário construir pactos éticos claros, que envolvam o uso responsável dos dados, a transparência nos algoritmos e a avaliação contínua das consequências dessas tecnologias.
Além disso, a IA deve ser vista como uma coadjuvante no fortalecimento da relação entre as marcas e seus públicos. Novamente, reforço seu papel de apenas ser uma ferramenta alimentada pelo humano, e não como um substituto das pessoas, que devem permear em cada interação. O último “enter” vem a iniciativa de alguém. Isso significa adotar a tecnologia como um meio para amplificar a criatividade e a inovação, sem sucumbir à tentação de utilizá-la de forma opaca ou manipuladora.
A Inteligência Artificial amplia possibilidades criativas, mas também nos desafia a atualizar os marcos éticos. Se um texto foi gerado por IA, isso deve ser informado? Se uma imagem é sintética, o público tem direito de saber? Se uma campanha simula uma situação social real — mas não é — como isso deve ser classificado?
A evolução tecnológica da ferramenta está aí, cada vez mais rápida e potente. Não pretendo frear sua evolução e o seu uso criativo em todo o seu potencial, mas me preocupo muito como a transparência, a ética e a verdade.
A Inteligência Artificial amplia possibilidades criativas, mas também nos desafia a atualizar os marcos éticos. Se um texto foi gerado por IA, isso deve ser informado? Se uma imagem é sintética, o público tem o direito de saber? Se uma campanha simula uma situação social real, mas não é, como isso deve ser classificado?
Há vários anos, num evento de varejo, subi ao palco com o CEO da própria DM9 na época. A internet estava em sua adolescência e as redes sociais engatinhando, mas nunca esqueci o que ele disse à audiência: “Depois do advento da internet, você não é dono, nem mais do seu passado. Por isso, sempre fale ou conte a verdade”.
A verdade é que ainda estamos criando essas regras. E, justamente por isso, as empresas conscientes precisam liderar esse processo com responsabilidade, transparência e diálogo. Reitero que isso não significa abandonar a tecnologia, mas usá-la com ética, com clareza sobre seus limites e potenciais riscos. Afinal, é a sua consciência muda o mundo.
O exemplo consciente: como uma empresa deveria agir
Uma empresa que vive os pilares do capitalismo consciente, diante de um erro como o da campanha da DM9 para a Consul, faria diferente: chamaria para si a responsabilidade institucional, faria um pedido público de desculpas e comunicaria de forma clara ao mercado, consumidores e parceiros o que houve, quais foram os erros, os aprendizados e quais medidas preventivas serão adotadas.
Mais do que isso, aproveitaria o momento para liderar uma conversa pública sobre ética no uso da IA. Convidaria outras empresas, anunciantes, associações e reguladores para criarem juntos diretrizes transparentes. Transformaria o erro em aprendizado coletivo. Isso é consciência. Isso é capitalismo regenerativo.
Conclusão: reputação se constrói com verdade
A confiança é o principal ativo de uma marca. A confiança se constrói com a verdade, que leva muito tempo para ser reconhecida e apenas um instante para ser destruída. A confiança requer coerência entre o discurso e a prática. Em tempos de IA generativa, deepfakes e realidades sintéticas, essa coerência é essencial.
A comunicação, quando ética, não é apenas uma ferramenta de vendas, mas de engajamento. Ela é um instrumento de formação de cultura, de sensibilização social e de fortalecimento institucional. A comunicação consciente exige, portanto, coragem. A coragem de dizer a verdade, de assumir responsabilidades e colocar a ética à frente do ego.
A sociedade está mais atenta. Os consumidores estão mais críticos. Os jovens profissionais estão buscando propósito. Os investidores, cada vez mais, cobram práticas sustentáveis e transparentes. Quem quiser permanecer relevante, de forma sustentável nos próximos anos, terá que fazer muito mais do que falar bonito. Terá que agir com integridade.
Hugo Bethlem é presidente do Capitalismo Consciente Brasil.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Envato