1. Por que estamos falando de home office “de novo”?
Quando o art. 75-A da CLT entrou em vigor, lá em 2017, parecia que o legislador tinha resolvido tudo: bastava incluir “teletrabalho” no contrato e liberar o notebook para o empregado trabalhar de chinelos. Veio a pandemia, correu-se para editar a MP 1.108/2022 e a conversão na Lei 14.442/2022, e muitos gestores acharam que a novela tinha acabado de vez. Pois 2025 mostrou que aquela era só a primeira temporada.
Com a digitalização já assimilada, o Ministério do Trabalho, a Receita Federal, o eSocial, os sindicatos e até o Tribunal Superior do Trabalho voltaram a mexer no tabuleiro — cada qual puxando a sardinha para o seu lado. Resultado: o regime remoto ganhou novas amarras contratuais, fiscais e de saúde e segurança, a serem observadas a partir deste ano, sob pena de multas mais salgadas do que o café de máquina.
A boa notícia? As mudanças oferecem balizas claras (finalmente!) para custeio, ergonomia e controle de jornada. A má: quem não se adequar corre o risco de transformar economia em passivo trabalhista, com direito a horas extras, doenças ocupacionais e autuações de SST.
2. O arcabouço jurídico pós-pandemia
2.1. CLT e legislação ordinária
- Arts. 75-A a 75-E da CLT — definição, reembolso de despesas e liberdade de forma contratual.
- Lei 14.442/2022 — incorporou boa parte da MP 1.108/2022, permitindo home office para estagiários e aprendizes, e flexibilizando o vale-transporte.
2.2. Normas infralegais
- Portaria MTE nº 765/2025 — prorrogou para 26 de maio de 2026 o capítulo 1.5 da NR-1, mas manteve a obrigação de mapear riscos psicossociais (burnout, assédio algorítmico) no G.R.O.
- NR-17 (Ergonomia) — segue exigindo avaliação do posto de trabalho remoto e, desde a Portaria 4.219/2022, inclui anexo específico para teletrabalho, com treinamento anual e registro fotográfico.
- Leiaute eSocial v. S-1.3 — obriga preenchimento do evento S-2240 com o código “09.01.012 – Teletrabalho” para todos os empregados remotos.
2.3. Sindicatos e CCTs
- Bancários, telecom, tecnologia e facilities puxaram a fila. Na convenção bancária 2025/2026, por exemplo, a cláusula 71 instituiu ajuda de custo anual de R$ 1.036,80 para quem fica mais de 50 % do mês em casa.
2.4. Receita Federal
- A Solução de Consulta COSIT 63/2022 confirmou que o ressarcimento de internet e energia não integra salário, nem base de INSS ou IR, desde que documentalmente comprovado.
2.5. Projetos em tramitação
O PL 3.512/2020 pretende positivar o direito à desconexão e obrigar o reembolso automático de despesas, salvo convenção em contrário — sinal amarelo para quem aposta no silêncio contratual.
3. O que efetivamente mudou (e por que o RH precisa correr)
3.1. Contrato escrito virou peça central
- A CLT já exigia termo específico, mas as CCTs de 2025 passaram a listar itens mínimos:
- Descrição detalhada de tarefas – nada de cláusula genérica.
- Regime (100 % remoto ou híbrido) – com aviso de 15 dias para qualquer alteração.
- Modalidade de ponto – software, tarefa ou autodeclaração.
- Política de reembolso – teto, periodicidade e comprovação.
Sem esses tópicos, o documento é tratado como “incompleto” em fiscalizações. Alguns auditores já aplicam a multa do art. 47 da CLT por admissão irregular.
Pitaco tradicional: lembre-se do velho ditado cartorial — “O que não está escrito, não está combinado.” No home office, vale por dois.
3.2. Reembolso & ajuda de custo: nem gorjeta, nem salário
A moda de pagar “fixo de R$ 100” pegou de 2020 a 2023. Agora, a Receita exige vinculação à despesa real. Se a empresa deposita valor igual todo mês, sem prestação de contas, o fiscal entende como habitualidade salarial e manda recalcular FGTS e INSS.
A saída que mais tem prosperado:
- Teto percentual: 10 % do piso da categoria (modelo de várias CCTs de serviços) ou valor anual fechado, revisado por INPC.
- Relatório simplificado de gastos, com contas de luz e internet anexadas a cada seis meses.
- Rubrica “Ajuda de custo teletrabalho – verba indenizatória art. 457 § 2º CLT/Solução COSIT 63/22” no holerite.
3.3. Ergonomia 2.0 – laudo por fotos (e multa por falta de data)
Com a NR-17 revisada, o empregador deve:
- Orientar o empregado em vídeos ou e-learning (20 min).
- Receber autodeclaração de que a estação atende às medidas (altura da cadeira, distância do monitor, iluminação).
- Arquivar duas fotos datadas: uma do posto vazio (para medir mobiliário) e outra em uso (para postura).
A Portaria MTE 765/2025 prorrogou o GRO, mas não aliviou ergonomia. Empresas autuadas em SP relatam multas de R$ 6.000 por empregado sem documentação.
Humor rápido: se a foto mostrar o gato dormindo no teclado, o auditor não vai rir — ele dobra a multa por risco biológico não informado.
3.4. Jornada, ponto e direito à desconexão
Duas linhas finas separam o art. 62 III (sem horas extras) do art. 7º XVI da CF (hora extra majorada):
- Controle possível: se o empregado usa VPN, sistemas internos e chat corporativo, o TST entende que existe rastreabilidade e, logo, controle.
- Liberdade de horário real: se a entrega é “por projeto” e o gestor só cobra resultado semanal, aplica-se art. 62 III.
Em junho 2025, a 3ª Turma do TST condenou universidade a pagar extras a professora que corrigia provas em plataforma digital fora do expediente.
O PL 3.512/2020 quer impor janela de 11 h entre jornadas (espelho da Diretiva UE 2019/1152). Mesmo sem lei, empresas vêm criando política de “mute” automático no Teams entre 20 h e 7 h, para evitar prints judiciais.
3.5. Riscos psicossociais e burnout
Desde 2024, o MTE discute a velha máxima “meta agressiva + algoritmo implacável = assédio moral organizacional”. O GRO exige matriz de risco específica para fatores psicossociais (pressão, isolamento, sobrecarga).
Três pontos pegam:
- Metas inatingíveis geradas por BI, sem revisão humana.
- Dashboards que ranqueiam produtividade em tempo real.
- Resposta a mensagens fora do horário.
Falhou aqui? O reconhecimento do burnout como doença ocupacional, em fevereiro/2025, abriu a porta para estabilidade acidentária e dano moral.
4. Checklist de conformidade 2025
5. Pontos de atenção (o que anda dando dor de cabeça)
- Ajuda de custo sem recibo → oscilação de INSS em fiscalizações retroativas a 2018.
- Foto fora de foco → laudo ergonômico inválido; multa dobrada (sim, já aconteceu).
- “Horário flexível” no papel, mas VPN mostra login às 8 h → juiz enquadra controle de jornada.
- Férias fracionadas em teletrabalho: se o empregado viaja para outro fuso, atenção às 48 h de antecedência do aviso (CLT, art. 135).
- Vale-transporte: dispensável no integral; devido no híbrido com dia presencial fixo. A dificuldade é mensurar se o “híbrido flutuante” gera obrigação — melhor convenção coletiva resolver.
6. O que fazer agora? (sem pânico)
“Antes prevenir que litigar” — conselho antigo que nunca sai de moda.
- Revisar todos os contratos — inclua número de horas, checkpoints e política de TI.
- Padronizar ajuda de custo — de preferência ligada a nota fiscal ou teto percentual.
- Treinar liderança — gestor que cobra no WhatsApp às 22 h põe tudo a perder.
- Atualizar PGR — incorpore saúde mental; use check-lists simples.
- Monitorar legislação — PL 3.512/2020 e eventual decreto sobre direito à desconexão podem virar lei em 2026.
Se a empresa já possui compliance trabalhista, basta adaptar dois anexos (teletrabalho & psicossociais). Se não tem, vale investir: é mais barato do que pagar a primeira condenação de burnout.
7. Conclusão
O teletrabalho deixou de ser solução emergencial para virar modelo de negócio permanente — e, como todo modelo, carrega ônus e bônus. A regulação de 2025 não demoniza o home office; ela apenas exige a mesma diligência que o velho livro-ponto exigia no escritório físico.
As novidades parecem burocráticas, mas, se bem tratadas, reforçam cultura de saúde, transparência e produtividade. Quem ajustar processos agora surfará a próxima onda (passaportes digitais, work from anywhere) com risco mínimo. Quem deixar para depois… bem, o TST e o MTE não costumam perdoar atraso, mesmo que seja de apenas um clique.
E lembre-se: teletrabalho não é “trabalho de Telegram”. É contrato formal, com foto, recibo e PGR. Se até o café precisa ficar na temperatura certa, por que o jurídico e o RH arriscariam servir algo requentado?
Valéria Toriyama e Ana Paula Caseiro Camargo são advogadas do Caseiro e Camargo Advocacia Estratégica.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagem: Envato