No universo do luxo, incluindo o segmento de viagem e turismo, a conquista da escala é historicamente associada ao risco de perder a essência do que torna uma experiência exclusiva, sensorial e memorável. Entretanto, a transformação digital dos últimos anos impõe um novo paradigma: é possível combinar expansão e personalização sem comprometer a autenticidade e o caráter artesanal que definem o setor.
O desafio da escala no luxo digital
Tradição e requinte exponenciam valor quando estão alinhados à capacidade de criar ambientes que despertam significado, atmosfera e desejo. No entanto, escalar tais experiências não é apenas replicar um roteiro de atendimento, mas, sobretudo, garantir que cada jornada seja única, fluida e plenamente integrada às expectativas emocionais e contextuais do cliente.
A América Latina, em especial o Brasil, tem se destacado como laboratório dessa evolução. O V3rso, hotel-boutique digital do Grupo Emiliano, por exemplo, utilizou intensa integração entre dados, automação e Inteligência Artificial para construir jornadas personalizadas, nas quais cada interação prevê necessidades, responde a preferências e preserva o toque humano em todos os pontos de contato.
A aplicação estratégica da tecnologia permitiu ao projeto ir além da mera digitalização de processos operacionais; ela também potencializou conexões autênticas entre hóspedes e a marca. Ao integrar diferentes etapas da jornada, desde o momento da reserva até o pós-checkout, por meio de plataformas inteligentes, o hotel-boutique conseguiu preservar o caráter artesanal, criar experiências sensoriais imersivas e, simultaneamente, operar com uma eficiência que suporta a expansão sem perda de identidade.
Alianças estratégicas e tecnologia como investimento
A experiência latino-americana destaca que a verdadeira transformação exige a formação de alianças capazes de cocriar soluções digitais sob medida juntas, as equipes mapeiam a fundo cada etapa da jornada do cliente, desenvolvem mecanismos para unificar dados de múltiplas fontes e implementam automações que aprimoram o controle de qualidade e a velocidade de resposta.
O uso da Inteligência Artificial para antecipar demandas, adaptar sugestões em tempo real e aprender continuamente a cada interação transforma a tecnologia em um veículo de diferenciação, não em um mero recurso de back-office. Nesse contexto, a tecnologia não pode ser encarada como um custo operacional, mas comoum investimento estratégico capaz de impulsionar margens, abrir novas oportunidades de receita e posicionar a marca na vanguarda da inovação.
A jornada do consumidor segundo o google: fluidez como fundamento
Segundo relatório da Bain & Company, em parceria com a Altagamma, o mercado global de luxo deverá alcançar US$ 91 bilhões em vendas digitais em 2025, respondendo por 20% do total do setor, um crescimento expressivo especialmente entre consumidores de alta renda que buscam experiências omnichannel de excelência. Aproximadamente 68% das compras em lojas físicas já são influenciadas por jornadas digitais, demonstrando que a integração de canais é indispensável para criar diferenciais competitivos e ampliar negócios.
O novo consumidor de luxo não passa mais por etapas lineares, mas percorre uma teia de micro-momentos, alternando entre plataformas, canais e contextos em busca de autenticidade e conexão imediata. Um estudo conduzido pela Google, em colaboração com o Boston Consulting Group, evidencia que 70% das jornadas envolvem pelo menos um touchpoint digital da marca, como pesquisa, YouTube e Maps, enquanto 42% das vendas físicas são diretamente impactadas por interações nesses pontos de contato digitais.
A fluidez, transição instantânea entre o universo online, offline e diferentes canais digitais, emerge como um dos pilares da experiência de luxo contemporânea. O desafio está em criar ecos de exclusividade em todos os pontos, garantindo que a identidade da marca, o cuidado e a personalização sejam sentidos em cada interação, seja ela presencial ou mediada por tecnologia.
Gerações e o novo luxo: digital, personalizado e relevante
O perfil do consumidor de luxo global está se transformando rapidamente. A Bain & Company e a Altagamma também projetam que até 2025, os millennials e a geração Z representarão 70% do crescimento do segmento, impulsionados por um protagonismo digital inédito, especialmente em dispositivos móveis, experiências imersivas e ativação de comunidades. Para esses grupos, o digital não é acessório: é o ambiente central no qual as marcas devem demonstrar relevância, capacidade de resposta, criatividade e propósito.
A experiência de luxo, para além do produto, se estende à transmissão de identidade, valores e ao senso de pertencimento. Os consumidores de luxo dessas novas gerações buscam, primordialmente, experiências digitais autênticas, capazes de gerar conexões emocionais e transmitir exclusividade em escala. Esse objetivo é atingido tanto por meio do atendimento hiperpersonalizado quanto pelo design de interfaces intuitivas, com recursos como realidade aumentada, ativações artísticas digitais e storytelling envolvente.
Lealdade e vínculos emocionais: o efeito da personalização orientada por dados
Em um contexto cada vez mais fluido e fragmentado, a lealdade à marca é conquistada, e não herdada. Estudos da Academy of Marketing Studies demonstram que experiências digitais autênticas, pautadas por personalização inteligente e atenção individualizada, ampliam dramaticamente o sentimento de pertencimento e transformam clientes em verdadeiros embaixadores das marcas. Soluções avançadas de analytics e IA permitem que cada preferência seja reconhecida e respeitada, tornando o cliente o agente de sua própria jornada, com autonomia e sofisticação.
Inovações digitais, como vídeos interativos, comunidades online, experiências em realidade aumentada e programas de lealdade gamificados, multiplicam o ciclo de engajamento pós-compra e reforçam o senso de exclusividade, pilares essenciais para um segmento em que o “retorno” não é medido apenas em vendas, mas em reputação, recorrência e no valor vitalício do cliente.
Medindo impacto e retorno: oportunidade para o setor de luxo
Os dados comprovam que a aposta em tecnologia resulta em margens, fidelidade e crescimento: experiências digitais de alto padrão impulsionam a decisão de compra, a propensão à recomendação e aumentam substancialmente o lifetime value do consumidor de luxo. O investimento em plataformas, automação e inteligência de dados deve ser entendido como um caminho para amplificar valor, não para reduzir custos. Parcerias estratégicas com players de inovação são, portanto, indispensáveis para desenhar e implementar soluções de alto impacto, capazes de equilibrar escala operacional e sofisticação sensorial.
Tecnologia como potencializadora da experiência de luxo
O futuro do luxo reside na capacidade de unir excelência artesanal à inteligência digital, ampliando as possibilidades de personalização e relevância. A tecnologia se estabelece como parceira irremovível da experiência: ela não elimina o fator humano, mas o potencializa, orquestra jornadas complexas com fluidez, conecta universos e torna escaláveis as sensações de exclusividade e pertencimento.
A expansão do digital como investimento estratégico, aliada à escolha de parceiros inovadores, representa uma das maiores oportunidades de diferenciação e crescimento sustentável para o varejo, o travel, a mobilidade e a hospitalidade de alto padrão, sobretudo em mercados emergentes.
Investir em tecnologia não significa apenas adotar ferramentas modernas, mas transformar a cultura organizacional para que cada decisão, do design de serviço à operação, maximize o valor percebido pelo cliente. O luxo contemporâneo é, ao mesmo tempo, mais acessível e mais exigente; é um convite ao setor para inovar, colaborar e entregar experiências que combinam aura, intenção e desejo, sem jamais comprometer a promessa fundamental da excelência.
Juliana Velozo é senior VP de Retail, Travel & Transportation da Thoughtworks Latam.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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