Antes, a loja resolvia o problema da escassez. Hoje, tenta aliviar o vazio da pressa. O essencial está no app. Mas o que leva alguém a sair de casa para comprar, no mundo hiperconectado de 2025, é outra pergunta. E exige outra resposta.
A arquitetura de varejo, por décadas guiada por métricas logísticas, está sendo desafiada a assumir um novo papel. Não basta funcionar — é preciso fazer sentido. E fazer sentido, hoje, passa por se misturar à cidade, à cultura e ao tempo das pessoas.
Projetos como o Market Cube, do escritório MVRDV, em Zhubei (Taiwan), não são respostas prontas, mas tentativas provocantes. Mais do que um edifício comercial, ele propõe um modelo urbano em que varejo, hospitalidade e vida pública se entrelaçam — e desafia nossa visão sobre o que uma loja pode ser.
A loja que escuta o tempo
Zhubei é uma cidade jovem e em rápida expansão, marcada pela presença do parque tecnológico de Hsinchu. Ali, o Market Cube se apresenta como uma espécie de bairro vertical: mercado, restaurante, creche, galeria, fazenda urbana — tudo empilhado, conectado por escadas rolantes externas e fachadas abertas que respiram junto com a cidade.
O fluxo de pessoas deixa de ser algo a controlar e vira parte da arquitetura. Não há corredores encapsulados nem zonas neutras. Cada andar abriga um ritmo, um uso, um encontro. E o que parece inovação estética é, na verdade, uma proposta de convivência. Um edifício que se comporta menos como ponto de venda e mais como infraestrutura social.

O varejo que se mistura à vida
Esse tipo de espaço representa uma mudança de mentalidade: o consumidor não quer apenas ser atendido — quer ser acolhido. Quer encontrar um lugar que se encaixe no seu dia, e não o contrário. Quer viver algo que vá além da transação.
Não é à toa que projetos híbridos estão surgindo ao redor do mundo: o Markthal, em Rotterdam, tornou-se ícone turístico e fonte de renda estável; o Market 57, em Nova York, transformou-se em arena cultural e gastronômica; o Mercado da Ribeira, em Lisboa, misturou tradição e curadoria com um modelo resiliente de operação.
Esses espaços não ignoram a lógica do negócio. Pelo contrário — apostam que permanência qualificada também pode gerar retorno. Que tempo bem vivido é uma métrica econômica subestimada. Mas nem tudo é simples.
E a operação? E o risco?
Misturar funções exige lidar com fluxos distintos, horários conflitantes, legislações cruzadas. A governança é mais complexa. A manutenção precisa ser impecável. E o risco de fragmentação — de espaços subutilizados, de vocações mal definidas — é real.
O Market Cube enfrenta todos esses desafios. Ele não é um produto final. É um organismo em fase de testes. E é justamente por isso que vale ser observado com atenção: porque ousa prototipar um caminho que muitos defendem, mas poucos colocam de pé.
A crítica embutida na proposta
Projetos como esse também cumprem outro papel importante: colocam em xeque o modelo dominante. O shopping tradicional, com sua neutralidade cenográfica, ainda é a paisagem mais repetida das cidades contemporâneas — mas sua fórmula está esgotada. O Market Cube, nesse sentido, é quase um antídoto. Ele se opõe à lógica de enclausuramento, de repetição, de controle total.
Mas é justo perguntar: será que, ao transformar lojas em cidades, não corremos o risco de criar cidades que funcionam como lojas? Essa ambiguidade é saudável. Ela evita que o projeto seja romantizado. E nos lembra que toda inovação urbana precisa ser contextual.
Nem todo bairro precisa de uma praça vertical. Nem toda cidade tem densidade, clima ou cultura para absorver esse tipo de tipologia. Mas o que importa é que essas ideias existam — para tensionar o que ficou confortável demais.
Somos a favor? Sim — e atentos
Sim, defendemos esse tipo de provocação. Porque ela amplia o escopo do varejo. Porque convida arquitetos, operadores e marcas a pensarem juntos. Porque devolve à loja uma função que ela nunca deveria ter perdido: ser um espaço onde a vida real acontece.
Mas defendemos com consciência. Com senso de contexto. Com a humildade de saber que não se trata de uma solução universal — e sim de uma direção possível, que pode ou não fazer sentido conforme o tecido urbano e social em que se insere.
O metro quadrado que vale a pena
Talvez a pergunta mais honesta hoje não seja “quanto vende por metro quadrado?”, mas:
O que esse metro quadrado oferece que nenhum clique pode replicar?
Talvez ele ofereça um tempo de descanso para um idoso, sombra e curiosidade para uma criança, um novo sabor para alguém que nunca teria conhecido aquela cozinha. Talvez ele ofereça afeto, descoberta, pausa – ingredientes intangíveis, mas fundamentais para construir memória e significado.
E talvez seja esse o novo desafio do varejo físico: não só vender, mas habitar com inteligência o lugar que ocupa.
Renato Fregnani é fundador da Freg Design e presidente do Retail Design Institute Brasil.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagens: Reprodução (MVRDV)