Dissenso, sim. Conflito, não

A verdade é uma só: nunca foi tão difícil fazer gestão de pessoas dentro das corporações. Apesar de já ter tocado no assunto recentemente, no artigo “10 vozes do mercado: como é liderar as novas gerações”, vou escrutinar um pouco mais, agora do ponto de vista das ideias conflitantes dentro das corporações.  

A contraposição de ideias, que antigamente era algo virtuoso na sociedade democrática para sua evolução, o chamado dissenso, tornou-se o pior pesadelo empresarial dos últimos tempos, uma vez que essa discussão (sempre extrema e polarizada) se deslocou do social para as corporações. Só que de forma velada, até porque as pessoas têm um mínimo de senso de sobrevivência corporativa e não querem, ou não podem, perder seus empregos em tempos bicudos como os nossos. 

Um comportamento moral aceitável entre as relações interpessoais no trabalho (e com o próprio negócio) vem se diluindo com alguma recorrência, e as faces ideológicas polarizadas têm se desnudado pouco a pouco,  revelando-se mais e mais. Está cada vez mais difícil esconder-se atrás de uma pretensa neutralidade diante de tantos acontecimentos externos de impacto diário na vida das pessoas. 

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A falha na diplomacia social e, ultimamente, até entre países, é um sintoma inequívoco disso nos últimos anos. A cor política e social nas empresas e, na maioria das vezes, a transformação dessas cores no famoso “nós contra eles” pode estar prejudicando a produtividade nas empresas. 

Pesquisas nos EUA e no Canadá apontam que a polarização ideológica, especialmente a política, está correlacionada ao aumento de conflitos, ostracismo e até turnover; quase metade dos funcionários já evitou colegas por divergências políticas, e 44% relatam queda de produtividade em ambientes polarizados.

Num cenário como esse, onde fica a cultura empresarial? Como os líderes devem lidar com essa situação? Qual seria o melhor posicionamento institucional diante de um mundo tão conflituoso? Essas são apenas algumas poucas perguntas entre tantas que têm surgido nos “chãos de fábrica” e nos escritórios da Faria Lima, Brasil afora. 

E devolvo com outras perguntas: será que existe resposta certa (ou até padrão) para o assunto? Será que existe um one size fits all (ou seja, uma regra magna de conduta corporativa) que possa responder a esse dilema? Bem, essa é, de fato, uma pergunta retórica, porque a resposta é óbvia: não. 

Como dizem os gurus da psicologia positivista e do comportamento humano, quando o mundo está desorganizado lá fora, organize o seu mundo interno. 

Jordan Peterson, um dos psicólogos contemporâneos atuais mais celebrados — e também mais controversos pela sua leitura conservadora e pelos seus axiomas de estilo de vida — no seu livro “12 Regras para a vida”, recomenda em sua primeira regra: “Arrume sua cama antes de tentar arrumar os problemas do mundo”.  E, nas empresas, essa máxima pode cair muito bem. 

O passo número um para uma corporação gerir os conflitos intramuros, ou seja, os que estão sob seu teto e suas responsabilidades, é conhecer a si mesma e ter claro quais os “dos” e os don’ts” de sua identidade. 

O primeiro passo contra a polarização ideológica nas empresas é recorrer à própria bússola moral. Em minha carreira, vivi crises de todos os tipos, internas e externas, e aprendi, na prática, que a bússola moral da companhia (seus princípios fundamentais e sua razão de existir) é uma espécie de guard-rail, capaz de endereçar os dilemas ideológicos dentro das corporações. E por quê?

Porque oferece um eixo comum capaz de alinhar crenças, valores e comportamentos dos colaboradores, tornando possível superar divisões e criar coesão mesmo em cenários de alta polarização política ou social

Estudos em psicologia organizacional mostram que, sem uma identidade institucional forte, há maior fragmentação, formação de grupos defensivos (ilhas) e conflito de valores, o que impacta negativamente o engajamento, a produtividade e a retenção. A identidade empresarial bem estabelecida funciona como  contrapeso, promovendo integração mesmo diante de divergências externas e internas.

Reconhecer esse atributo corporativo é, definitivamente, o primeiríssimo passo para a organização da cultura empresarial e, por consequência, para dar passos em direção ao alinhamento de comportamentos e, assim,  melhorar a produtividade. 

A literatura é extensa nesse tema. O movimento do Capitalismo Consciente, por exemplo, coloca com clareza que são necessários 4 pilares para a construção de uma identidade corporativa contemporânea, no caso, consciente: o propósito da empresa existir, sua cultura, uma liderança consciente e foco centrado na cadeia de valor. 

Esses 4 pilares, quando trabalhados em conjunto e de forma alinhada, constituem a engrenagem perfeita para o uso da bússola corporativa, que estrutura sua identidade. 

Fracassos também podem levar a dissenso interno

O middle management nas empresas é o grupo mais emocionalmente impactado por eventuais fracassos de projetos, pois geralmente está em uma fase crítica do desenvolvimento profissional, na qual cada contratempo pode representar um risco significativo para sua trajetória. 

Essa vulnerabilidade emocional pode desencadear controvérsias internas, incertezas e conflitos, criando um ambiente de confusão que, se não for bem gerido, pode comprometer seriamente a estabilidade e a performance de toda a organização.

A gestão deste processo não é simples. É preciso coragem do líder, pois envolve o reconhecimento de que divergências decorrências de fracassos de projetos fazem parte da falibilidade humana. Quando gerenciados de forma madura, podem ser transformados em motores para inovação e aprendizado.

Um case que ouvi da empresa inglesa de cruzeiros marítimos Virgin Atlantic, do famoso e não menos controverso Richard Branson, mostra que enxergar de frente contraposições, derrotas e insucessos (internos e externos) pode gerar frutos muito positivos. Muitos dos produtos criados pela empresa surgiram de projetos fracassados. 

Um exemplo emblemático da empresa é o caso da Virgin Cola, que não conseguiu se firmar no mercado, mas, indiretamente, inspirou o lançamento da Innocent Drinks, uma das maiores e mais bem-sucedidas marcas de bebidas no Reino Unido, criada por ex-funcionários da Virgin Cola. 

Evoluir faz parte da natureza das empresas. Quem não se lembra, por exemplo, do Google Hangout, ferramenta de comunicação precursora do atual Google Meet? O Hangouts permitia conversas entre dois ou mais usuários, com funcionalidades para chats em grupo e videochamadas com até 25 usuários em alta definição, voltada tanto para o uso pessoal quanto empresarial. 

No entanto, com o aprendizado de uso, o Google passou a dividir o Hangouts em duas plataformas focadas em ambientes corporativos: o Hangouts Meet (para videoconferências, que evoluiu para o Google Meet, sucesso retumbante da empresa) e o Hangouts Chat (para mensagens instantâneas, que evoluiu para o Google Chat). O Hangouts clássico foi oficialmente descontinuado em 2022, com os usuários migrando para as novas plataformas. 

Usando o clichê habitual dos coaches e gurus, trata-se de usar o fracasso como oportunidade, como uma evolução. 

Seguindo a rebeldia de comportamento do dono, Richard Branson, a Virgin Atlantic costuma “premiar fracassos” como uma espécie de sinalização de que errar, além de fazer parte do jogo corporativo, leva à inovação e à evolução. 

Você está preparado para o dissenso? 

Ouço muito dos clientes (C-Level) da consultoria que é mais fácil colocar um foguete no ar do que fazer a gestão de pessoas. Isso, claro, porque lidar com o subjetivo humano não é exatamente fácil e, pior, não é uma disciplina ensinada nos bancos das universidades (nem das “Ivy Leagues” americanas, quiçá aqui nas nossas).

Vamos lá. 

Negociar dissensos requer uma cultura organizacional que valorize o diálogo aberto, onde todas as vozes possam ser ouvidas sem medo de retaliações ou estigmatização. É nesse contexto que o acolhimento institucional se torna imprescindível. 

A empresa precisa criar espaços seguros e estruturados para que os colaboradores expressem suas diferenças, entendam as realidades do outro e construam consensos que transcendem as opiniões pessoais. Esse acolhimento não significa apagar as divergências, mas sim acolhê-las como parte do tecido social que constitui o ambiente de trabalho, permitindo que o conflito se transforme em crescimento coletivo.

Fico realmente impactado com a derrocada dos programas de ESG e Diversidade, que se apagaram das companhias por esbarrarem na radicalização da ideologia woke ou porque não conseguiram mostrar ROI no curto prazo — muitas vezes, são vistos apenas como despesas sem KPIs mensuráveis.

Aceitar a pluralidade dentro da coporação é um passo além do mero respeito às diferenças: é uma prática ativa de valorização da diversidade de pensamentos, origens, visões e ideologias. Em tempos de polarização social exacerbada, recusar a pluralidade seria o mesmo que promover a formação de bolhas internas, pensamentos homogêneos e resistência a mudanças, todos fatores que corroem a capacidade de adaptação e inovação organizacional.

É a partir deste ponto que acho o papel dos líderes e gestores do Middle Management crucial. Eles são os facilitadores dessa negociação de dissensos e promotores do acolhimento. 

Para isso, precisam desenvolver não só habilidades técnicas e estratégicas, mas sobretudo competências humanas como empatia, escuta ativa, inteligência emocional e mediação de conflitos. Só assim poderão construir pontes entre os diferentes pontos de vista e orientá-los para os objetivos comuns da organização.

Ulisses Zamboni é chairman e sócio-fundador da Agência Santa Clara.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.

Imagem: Envato

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