O varejo tem passado por uma forte aceleração e transformação, impulsionada pela digitalização dos consumidores e da economia. Por consequência, os segmentos de consumo com maior penetração do digital têm sido aqueles que têm sofrido maior pressão por transformação e adaptação.
Em âmbito global, os segmentos que apresentam maior digitalização – ou, pelo menos, apresentaram a digitalização mais cedo – foram aqueles que vendem produtos padronizados ou comoditizados, como, por exemplo, o segmento de eletroeletrônicos, que tem seus produtos facilmente passíveis de comparação por parte dos consumidores. Outro setor que viu a maior parte das suas vendas migrar para o digital foi o segmento de brinquedos. Dados do varejo norte-americano mostram que 45% das vendas nessa categoria já acontecem online — a segunda maior taxa entre todas as categorias. Essa alta digitalização trouxe uma consequência direta: o desafio da comoditização do produto.
Quando o consumidor busca uma Barbie, um Hot Wheels ou um Lego, a jornada de compra costuma seguir um padrão objetivo e orientado pelo preço mais baixo e entrega rápida, o que transforma o e-commerce no canal ideal.
O resultado é um cenário duro para os varejistas tradicionais desse segmento. Marcas consagradas, como a Toys “R” Us, enfrentaram severas crises e precisaram ser resgatadas por fundos de investimento.
Vender brinquedos não é mais suficiente
Nesse ambiente desafiador do varejo de brinquedos, uma empresa que está se destacando é a centenária FAO Schwarz, rede de lojas de brinquedos, que enfrentou falência no início dos anos 2000 após duas recuperações judiciais. A empresa foi comprada pelo grupo ThreeSixty Group, com sede em Hong Kong, apostando na força da sua marca.
Desde então, a empresa passou por uma revisão completa da sua proposta de valor e do seu modelo de negócio, voltando a abrir lojas em cidades com amplo fluxo turístico, como Nova York, Chicago, Beijing, Londres, Dublin, Milão e Paris.
A FAO Schwarz deixou de ser uma loja que vende brinquedos para se tornar um espaço de descoberta e experiência. Hoje, suas lojas não carregam mais, no sortimento, produtos clássicos e comoditizados como as grandes marcas globais. Lá, o consumidor não encontra Barbies, Hot Wheels, Lego, massinha etc. A FAO Schwarz entende que, se o cliente deseja comprar esses produtos, terá uma melhor opção no online.
Ao invés de itens comoditizados, a FAO Schwarz passou a ter, nas suas lojas, produtos desconhecidos do grande público, mas que passaram por uma curadoria minuciosa e com foco em gerar encantamento. A loja é um local de descobertas, em que o cliente (adultos e crianças) vai até a loja para descobrir um produto incrível, mas de que nunca ouviu falar. Porém, o aspecto mais importante desse reposicionamento e repensar do modelo de negócio são as experiências oferecidas nas lojas.
Experiência como novo principal (e até mesmo único) gerador de lucro
Cada uma das lojas da rede é palco de experiências e demonstrações únicas e multissensoriais, com 10 a 15 delas acontecendo simultaneamente durante todo o período de funcionamento da loja. Experiências como demonstrações de mágicos, pilotos de drone, confecção de ursinhos de pelúcia customizados, laboratórios de ciências e oficinas de slime — tudo cuidadosamente coreografado para criar um espetáculo contínuo.
Essa mudança vai além do objetivo de tornar a loja viva e gerar movimento — ela alterou a lógica de rentabilidade da operação. Hoje, mais de 50% do faturamento da FAO Schwarz vem das experiências vividas dentro da loja, e estima-se que mais de 80% da margem de lucro do negócio seja gerado por essas experiências.
A experiência é rotativa e renovada conforme o interesse dos clientes, como o “salão de beleza” infantil, onde meninas vivem um dia de princesa com maquiagem, penteado e um kit completo para levar para casa — tudo por US$ 65. Outro destaque é a parceria com a marca Jellycat, que criou um restaurante onde crianças encomendam seus bichinhos de pelúcia em formato de comida (como um pretzel ou um hot dog). Elas escolhem o nome, veem a “preparação” do prato e saem com o presente em uma embalagem personalizada.
Até produtos simples são transformados. Um coelho de pelúcia, que poderia ser adquirido em qualquer loja, ganha valor emocional quando bordado com o nome da criança e de quem presenteou — diretamente na orelhinha do brinquedo. Não é sobre o produto, é sobre a história que ele conta.
Pessoas como motor da magia
Nada disso seria possível sem um time preparado. A FAO Schwarz tem um modelo de contratação e gestão que prioriza pessoas com talento nato para performance e conexão emocional e muitos dos seus colaboradores são aspirantes a atores da Broadway. A empresa oferece 10% a mais de salário do que a média do mercado e uma bonificação agressiva atrelada a metas de vendas diárias de cada uma das experiências.
Ao visitar a loja, o que mais chama a atenção é como ela se mostra viva e pulsante, com crianças correndo e interagindo com as experiências, pais filmando a reação dos filhos e os demonstradores se conectando de forma genuína com os clientes. O encantamento virou diferencial competitivo e é o pilar do novo modelo de negócio da empresa.
Reinvenção como única saída
O caso da FAO Schwarz é um retrato emblemático da virada que o varejo precisa operar para sobreviver em tempos de digitalização extrema e comoditização acelerada. Quando o produto perde valor por si só, a experiência precisa assumir o protagonismo.
O varejo de brinquedos apenas ilustra uma tendência que impacta diversas categorias: o consumidor busca o que o e-commerce não consegue entregar — emoção, interação, surpresa, pertencimento. As lojas que prosperarão serão aquelas capazes de criar momentos que não podem ser replicados online.
Eduardo Yamashita é COO da Gouvêa Ecosystem.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagens: Mercado&Consumo e Eduardo Yamashita