Em 14 de abril de 2025, o STF reconheceu repercussão geral no Tema 1.389 e determinou a suspensão nacional dos processos que discutem a licitude de contratos civis/comerciais (PJ/autônomos) usados como alternativa ao vínculo celetista, a chamada pejotização. A ordem partiu do ministro Gilmar Mendes e vale até o julgamento de mérito, com efeitos vinculantes para todo o País.
Trata-se do contencioso trabalhista mais sensível do momento: segundo o MPT, 8,3% das ações novas (de 2020 A março de 2025) pedem reconhecimento de vínculo, um “termômetro” da pressão sobre os modelos de contratação.
O que está realmente em jogo no Tema 1.389
O STF vai fixar tese sobre competência (Justiça do Trabalho x Justiça Comum), ônus da prova nas alegações de fraude, e critérios para distinguir contrato comercial válido de disfarce de emprego. No pano de fundo, a Corte já consolidou a terceirização ampla (Tema 725 e ADPF 324), desde que inexistam subordinação e pessoalidade típicas de emprego, mas as fraudes seguem sendo repelidas.
Tradução para o varejo: onde mora o risco
No dia a dia de lojas físicas, marketplaces, centros de distribuição e dark stores, os pontos críticos são bem conhecidos:
- PJ “dedicado e exclusivo” no PDV: vendedor, promotor, repositor ou visual merchandiser atendendo rotina, metas e ordens do gerente, um alto risco de caracterização de vínculo.
- “MEI-fantasma” para atividades nucleares (caixa, estoque, entrega): além de trabalhista, há risco previdenciário ou fiscal.
- Substituição de empregados por “parcerias” sem autonomia real (horário, uniforme, roteiro, metas, sanções): típico cenário de primazia da realidade.
- Coletivismo ignorado: terceirização sem observar cláusulas de ACT/CCT (acesso a refeitório, vestiário, EPIs, treinamentos, pisos setoriais etc.) — autuações e condenações solidárias.
Esses vetores permanecem relevantes mesmo após a tese pró-terceirização dos Temas 725/ADPF 324; o que se discute agora é o “como” e “com que provas”.
Ônus da prova: prepare o dossiê (hoje)
Com o Tema 1.389, a pergunta é: quem prova o quê? Enquanto a tese não vem, a melhor defesa é documento bom e rotina coerente. Checklist de dossiê do prestador (PJ/autônomo):
- Contrato com escopo comercial claro, preço e entrega por resultado, sem cláusulas de subordinação, como sanções disciplinares típicas.
- Comprovação de autonomia: múltiplos clientes, liberdade de agenda, substituição lícita, equipamentos próprios, emissão de nota fiscal regular e recolhimentos fiscais e previdenciários.
- Evidências operacionais: não usar ponto eletrônico, escala ou “abertura/fechamento de loja” como regra da casa; nada de uniforme obrigatório se não for fornecedor externo padronizado por marca.
- Governança de terceiros: due diligence de CNPJ, regularidade fiscal e de FGTS, cláusulas de compliance, seguro e responsabilidade por pessoal próprio.
- Capacitações/NRs: quando houver atuação em área de risco, como movimentação de carga no backstage, é preciso comprovantes de treinamentos, mas sem transformar o prestador em empregado “de fato”.
Quando terceirizar/PJ pode ser razoável
- Serviços especializados e acessórios ao core do PDV, como manutenção predial, trade marketing pontual, field force por campanha, consultoria).
- Projetos por entrega, com preço fechado, autonomia logística e sem inserção na escala ou gestão da loja.
Quando é melhor contratar CLT (ou fornecedor estruturado com contrato guarda-chuva)
- Funções contínuas no PDV, com pessoalidade e subordinação direta ao gerente (vendas, caixa, estoque, reposição).
- Atividades com riscos ocupacionais sob sua gestão direta, como movimentação de carga, câmaras frias.
Perguntas de ouro antes de assinar um contrato PJ
- O serviço será executado como, quando e onde pelo prestador? Se a resposta é “como nossos empregados – fazem”, acenda o alerta.
- Haverá metas e sanções operadas por você? Isso tem cheiro de subordinação.
- Ele pode substituir a própria equipe? Se não, há pessoalidade.
- O prestador tem outros clientes e estrutura real? Se não, prepare-se para litigância.
Estratégia processual até o julgamento
- Inventário de riscos: classifique contratos por exposição (alta/média/baixa) e identifique “pontos de arrependimento” (transformação em CLT, transição para fornecedor).
- Revisão documental: ajuste cláusulas e provas (NFs, ordens de serviço, registros de acesso), pois amanhã será tarde para “fabricar” autonomia.
- Tratamento de casos em curso: avaliar pedido de suspensão com base no Tema 1.389; qundo for aplicável, discutir competência/ônus da prova.
- Comunicação interna: treinar gestores de loja. O “manda no grupo do WhatsApp” costuma ser a prova-rainha do processo.
O que esperar da tese (três cenários)
- Tese pró-liberdade contratual com critérios rígidos de prova: reforça a terceirização/PJ quando comprovada autonomia; aumenta o peso de evidências operacionais.
- Tese pró-proteção (primazia da realidade): desloca o foco para a prática efetiva, ampliando hipóteses de reconhecimento de vínculo — compliance passa a ser uma questão de sobrevivência.
- Tese híbrida (competência + ônus + balizas): o mais provável, clareia quem julga, quem prova e como separar o bom contrato do “contrato de fachada”.
Conclusão
O Tema 1.389 não é um salvo-conduto para “flexibilizar” vínculos; é um chamado à governança trabalhista séria. O STF sinaliza que separará, com régua fina, a contratação empresarial legítima da pejotização fraudulenta e, até lá, vigora o que sempre vigorou: primazia da realidade, respeito às normas coletivas e provas consistentes sobre autonomia, risco e resultado.
Para o varejo, a mensagem é objetiva: terceirização e contratos PJ são instrumentos lícitos quando voltados a atividades especializadas, com autonomia real, precificação por entrega, ausência de subordinação e governança documental (contratos claros, notas fiscais, múltiplos clientes, OS por resultado, due diligence do fornecedor). Quando a operação exige pessoalidade e comando diário no PDV — vendas, caixa, reposição, estoque —, a via segura continua sendo o regime CLT (ou fornecedor estruturado com equipe própria e gestão independente). Velho, bom e eficaz: cada coisa no seu lugar.
Enquanto o Supremo fixa a tese, o caminho prudente é arrumar a casa: mapear PJs e terceiros, reclassificar funções críticas, higienizar contratos (banindo cláusulas de subordinação), padronizar evidências de autonomia e treinar lideranças para não gerirem terceiros como empregados. Some-se a isso a integração com CCTs, NR-17 e rotinas de compliance (LGPD no RH, saúde e segurança, assédio) na cadeia de fornecimento — terceirizar obrigação de fazer não significa terceirizar a responsabilidade.
No contencioso, a postura é técnica e fria: pedir suspensão de processos onde couber, negociar casos de alto risco, provisionar perdas, e documentar os critérios de decisão para o conselho. É gestão de passivo com foco no custo total (trabalhista, previdenciário, fiscal e reputacional), não um exercício de esperança.
Em suma, o julgamento do STF deve trazer segurança jurídica, não “vale-tudo”. Quem contrata certo, prova certo e treina certo continuará competitivo — com menos ações, menos multas e mais previsibilidade. O resto é folclore. Ou, em linguagem empresarial: terceirizar pode; terceirizar mal custa caro.
Valéria Toriyama e Ana Paula Caseiro Camargo são advogadas do Caseiro e Camargo Advocacia Estratégica.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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