“Os anos 80 serão lembrados na história do marketing como uma década de transição para um novo território. Neste novo mundo, você saberá o nome e o endereço de cada usuário final do seu produto, independentemente de onde ou como a compra for feita. Sua comunicação estará diretamente vinculada à vendas mensuráveis. Você buscará, individualmente, usuários de marcas concorrentes e os atrairá para o seu negócio com uma gama deslumbrante de serviços de valor agregado.”
A afirmação acima é dos autores Stan Rapp e Tom Collins, no revolucionário livro MaxiMarketing, publicado em 1987. Por uma série de fatores, que envolvem tecnologia, economia e cultura, faz pouco tempo que ela começou a se tornar realidade em grandes empresas. Estamos falando de um atraso de quase quatro décadas.
No mundo dos shopping centers, porém, apesar de o clichê “dados são o novo petróleo” ser amplamente conhecido, dá para afirmar, sem medo de errar, que nem todo mundo comprou ainda a tese de Rapp e Collins. Embora algumas poucas empresas mais estruturadas invistam pesado no marketing orientado por dados, a maioria ainda engatinha nessa jornada, ou discute a validade desse caminho.
Pensei nisso ao ler o relatório sobre programas de relacionamento produzido pela associação que reúne os shoppings brasileiros. O levantamento revela que somente 26% dos centros comerciais do País possuem um desses programas e que 54% deles foram implementados nos últimos quatro anos.
Com base nas conversas que temos tido com clientes e prospects, podemos garantir que uma parte importante dos shoppings que avaliam adotar a iniciativa não tem clareza sobre um ponto fundamental: qual é o motivo para investir em um programa de relacionamento.
O estudo da associação de shoppings elenca os maiores desafios para o sucesso de um programa como esse, na visão do setor. São eles são: obter participação e engajamento de lojistas; obter participação e engajamento dos clientes; e fazer caber o investimento no fundo de promoção do shopping.
Humildemente, gostaria de sugerir outros três desafios que deveriam ser considerados por quem já começou ou pretende começar essa caminhada. Vamos lá?
Convicção estratégica
Por que implantar um programa de relacionamento? Essa pergunta tem uma resposta clara na mente de todos os envolvidos, em especial da direção e dos empreendedores?
O Multi, programa da Multiplan, tem um objetivo claro: coletar informações relevantes sobre o perfil e o comportamento de compra dos frequentadores de seus shoppings, para estimular as vendas dos lojistas e, com isso, elevar os resultados da companhia.
No esforço para capturar dados, uma das soluções foi incorporar ao programa todas as pessoas que haviam feito o download do aplicativo da Multiplan. Para isso foi criada uma nova categoria para abrigar todos os que baixaram o app, ampliando brutalmente a base de clientes.
Para manter essa base ativa, a Multiplan fez outro movimento ousado: criou o ‘free flow’, que permite que clientes motorizados entrem e saiam do estacionamento, pagando a tarifa automaticamente pelo aplicativo. Isso alterou a rotina das pessoas que faziam isso por meio das tags de empresas como Sem Parar e Conect Car. Nesse caso, a convicção estratégica de que valia a pena criar alguma fricção em troca do enriquecimento da base fez toda a diferença.
Definir e alinhar objetivos claros para o programa em toda a estrutura precisa ser o primeiro passo – e não é nada fácil.
Ampliar a base de clientes e capturar dados
Muitos programas de relacionamento em shoppings brasileiros foram criados para identificar e reconhecer aquele pequeno grupo de clientes que produz a maior parte dos resultados. Em outras palavras, eles baseiam sua estratégia no princípio de Pareto.
Para quem não está ligando o nome à pessoa, a teoria criada pelo economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923), estima que, em geral, 20% dos esforços produzem 80% dos resultados. Comparativamente, cerca de 20% dos clientes de um shopping responderiam por 80% dos resultados.
Um programa baseado em Pareto, no fim do dia, corre o risco de falar com poucas pessoas e beneficiar um conjunto de lojas nas quais os consumidores mais endinheirados e frequentes concentram suas compras.
Um exemplo interessante de evolução do conceito de Pareto aconteceu com o Iguatemi One. Quando o programa incorporou um módulo promocional, chamado Iguatemi Collections, quadruplicou a quantidade de engajamento de participantes, além de incrementar tremendamente o GMV identificado. No mundo atual, a quantidade faz a diferença.
Pilotar um programa para poucos usuários pode ficar caro e nem sempre produzir resultados relevantes para a última linha. Ao mesmo tempo, vai ficando cada vez mais claro que o principal ativo de um shopping é a relação que ele é capaz de estabelecer com sua ampla base de clientes. Afinal, mall e lojas vazios, sem pessoas, valem pouco, não é mesmo?
Criar uma cultura de dados
Não são poucas as informações que os shoppings acumulam, mas não são dados estruturados ou facilmente utilizáveis. Parecem mais um bando de dados do que um banco de dados. Certa vez, uma cliente fez uma piada terrivelmente verdadeira: “não temos um data lake, temos um data swamp”. A comparação entre um lago de águas cristalinas e um pântano foi engraçada e, ao mesmo tempo, desalentadora.
Uma geração inteira de profissionais de shopping centers, em especial na área de marketing, ainda se apoia excessivamente em estratégias massivas, como promoções, eventos e campanhas publicitárias, mesmo que parte delas tenha migrado para o universo online. O letramento para interpretação e uso de dados ainda é incipiente.
O desafio persiste mesmo nas empresas que coletam, analisam e disponibilizam informações de maneira eficiente. Ouvimos há pouco tempo de um cliente um comentário desanimado: “nós temos uma infinidade de dados estruturados, mas o time não usa”.
Na maior parte das vezes, as equipes não usam porque não sabem, não têm hábito ou não são estimuladas a fazê-lo. Algumas redes e shoppings independentes têm reforçado o time com profissionais capazes de trabalhar orientados por dados. Porém, é preciso admitir, são ainda poucos os que capturam e usam dados corretamente em campanhas personalizadas e na geração de novas receitas.
Um exemplo incrível, que merece ser estudado em profundidade, é o da Helloo, unidade de retail media da Allos. Além de utilizar as informações de seu programa de benefícios para estimular vendas dos lojistas, como a Multiplan, a Allos vai além e trabalha na construção de uma plataforma que conecta compradores e vendedores, por meio de dados. Nessa estratégia, o papel da Helloo é fundamental, por viabilizar ações de ativação de marcas anunciantes nos shoppings. É a cultura de dados gerando resultados. Não é à toa que a participação de mídia no NOI (receita operacional líquida) da Allos é crescente.
Novas tecnologias surgem para aperfeiçoar a captura e ampliar a geração de dados, como soluções que permitem ao cliente pontuar em programas de relacionamento automaticamente, sem necessidade de escaneamento de notas, além de possibilitar a visualização do comportamento de compra dos consumidores fora do shopping.
No entanto, se não houver equipes, dentro da companhia ou fora dela, para explorar esse mundo de novas oportunidades, a multiplicação de dados pode se tornar um pesadelo. E tudo isso começa, claro, por uma mudança no modelo mental. De cima para baixo.
Concluindo: programas de relacionamento são fundamentais para enriquecer a base de dados dos clientes e pavimentar a evolução do modelo de negócio dos shopping centers.
Como disse certa vez Howard Schultz, da Starbucks, os benefícios que oferecemos são uma maneira de convencer as pessoas a confiarem em nós o suficiente para que forneçam informações relevantes sobre suas transações. Porém, se não soubermos o que fazer com tudo isso, todo esforço e investimento será em vão.
Luiz Alberto Marinho é sócio-diretor da Gouvêa Malls.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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