Quando a Starbucks anunciou que buscava vender parte de sua operação na China ou atrair novos investidores, o mercado entendeu o recado: a rede, que se tornou ícone global do café, perdeu o controle do maior mercado emergente para um desafiante chinês. A principal protagonista dessa virada é a Luckin Coffee, fundada em 2017 por dois ex-executivos do setor de tecnologia e mobilidade, não do mundo do café.
Foi justamente isso que deu à Luckin seu DNA. Essa origem era bem clara na primeira sede da empresa, em Pequim, que tive a oportunidade de visitar em 2019, com uma delegação do China Desk, da Gouvêa Ecosystem. Na entrada, em exibição, estavam carros e servidores. A única referência ao produto principal era um pequeno quiosque de café, quase no canto do hall.
A ascensão da startup foi tão veloz que a Starbucks viu sua fatia de mercado encolher em ritmo inédito. E agora, a Luckin atravessa o Pacífico e instala suas primeiras lojas em Nova York, levando o embate diretamente ao quintal da rival americana. O movimento é mais do que uma expansão geográfica, é a chegada de um modelo de negócios nascido na China, moldado por tecnologia e eficiência operacional, que pode reescrever a lógica da indústria global de cafeterias.
Desde o primeiro dia, a Luckin rompeu com o modelo tradicional. Não há caixa nem balcão para pedidos: toda compra é feita obrigatoriamente pelo aplicativo, que funciona como o centro nervoso da operação. É nele que o cliente escolhe, paga, coleta cupons, participa de promoções gamificadas e recebe recomendações personalizadas. Essa digitalização total, aliada a processos de produção e logística enxutos, permite que a empresa opere com custos fixos muito menores do que os da Starbucks e, consequentemente, ofereça preços cerca de 30% inferiores, sem abrir mão da margem.
A eficiência é reforçada pela escala: são mais de 24 mil lojas, com um formato compacto e padronizado que reduz aluguel e mão de obra. A tecnologia, além de controlar inventário e prever demanda em tempo real, garante uma experiência de consumo rápida e fluida: o pedido pode estar pronto em minutos para retirada ou entrega. Tudo isso se traduz em conveniência extrema, algo que dialoga diretamente com o estilo de vida urbano das grandes cidades chinesas, que agora é testado em Manhattan.
O marketing da Luckin também foge ao tradicional. A empresa domina colaborações com grandes marcas — a mais famosa foi o latte com licor Moutai, que vendeu 5,4 milhões de copos em um único dia. Essas ações, que combinam cultura pop, preços acessíveis e distribuição digital massiva, transformaram o consumo de café na China em um fenômeno social, especialmente entre jovens.
Esse modelo não apenas desafiou a Starbucks, como a superou: desde 2019, a Luckin tem mais lojas que a rival americana na China e, desde 2024, gera receita maior no país. A Starbucks, com seu conceito de “terceiro lugar” para encontros e socialização, foi atropelada por uma proposta que prioriza velocidade, conveniência e valor, desenhada para um consumidor nativo digital e habituado à economia de aplicativos.
A ofensiva nos EUA replica essa lógica. Em Nova York, as primeiras lojas foram abertas a poucos metros de cafeterias da Starbucks. A estratégia é clara: competir não com sofás confortáveis ou música ambiente, mas com um sistema de pedidos 100% digital, bebidas a preços agressivos e a promessa de um serviço rápido e previsível. Se a experiência funcionar para americanos e turistas, a Luckin pode iniciar uma expansão acelerada, assim como fez na China.
O Brasil é peça-chave nessa engrenagem. Em 2024, a Luckin fechou contratos de longo prazo para comprar até 240 mil toneladas de café brasileiro até 2029, no valor estimado em US$ 2,5 bilhões. Esse fornecimento garante estabilidade de custos para sustentar a estratégia de preços baixos e a expansão global da marca. A empresa já planeja abrir um escritório no País e, segundo fontes, estuda lançar operações locais.
Para o Brasil, isso significa que a disputa que começou em Pequim e agora se desenrola em Nova York passa também por Minas Gerais e Espírito Santo – e que o próximo capítulo dessa guerra do café pode ter São Paulo ou Rio de Janeiro no mapa da expansão da Luckin. Mais do que uma disputa entre duas redes de cafeterias, a guerra do café evidencia uma mudança estrutural no capitalismo global. Empresas chinesas, antes vistas apenas como fabricantes de baixo custo, agora exportam tecnologia, marcas próprias e modelos de negócios inovadores. A Luckin está transformando uma commodity tradicional em um produto de consumo digital, operado como uma plataforma, algo que a Starbucks, até hoje, não conseguiu replicar na mesma escala.
Se conseguir repetir nos Estados Unidos a disrupção que promoveu na China, a Luckin não só terá derrotado a Starbucks no maior palco do setor, mas também terá consolidado um novo paradigma: o de que o futuro do café não será ditado por mesas de madeira e longas conversas, mas por dados, aplicativos e eficiência tecnológica, com grãos brasileiros no centro dessa revolução.
Se a entrada da Starbucks na China há duas décadas simbolizou a ocidentalização do consumo chinês, a chegada da Luckin a Manhattan mostra o movimento inverso: o Oriente exportando modelo de negócio, eficiência e marcas globais.
In Hsieh é sócio-diretor da Gouvêa China Desk e acelerador de Negócios e Investimentos entre Brasil e China.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
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