Moda sem intermediários: o novo poder do consumidor e a reinvenção das marcas

Pressionadas por margens reduzidas e pela concorrência global, marcas de moda revisitam seus elos com o consumidor em um movimento crescente de desintermediação

A equação tem se tornado cada vez mais insustentável: de um lado, plataformas internacionais oferecem produtos de moda a preços ultracompetitivos; de outro, os custos de produção seguem em alta, pressionados por inflação, encargos, escassez de mão de obra qualificada e gargalos logísticos. No centro desse cenário está o consumidor, sensível ao preço, cada vez mais digital e, acima de tudo, no controle das escolhas.

A resposta que começa a surgir é clara: encurtar a cadeia de valor. A desintermediação passa a ser uma alternativa estratégica não apenas para varejistas e indústrias, mas também para os próprios consumidores. É um movimento em busca de mais eficiência, mas, sobretudo, de reconstrução de vínculos diretos em um mercado que se tornou disperso e, por que não dizer, impessoal.

Marcas próprias: o controle da experiência e da margem

Nos últimos anos, o crescimento das marcas próprias (private labels) tem sido consistente em diversos mercados. Segundo a NielsenIQ, os produtos de marca própria cresceram 2,5 vezes mais rapidamente que os de marcas tradicionais em 2023, mesmo sob o impacto da inflação global. A diferença de preço ainda é relevante — entre 20% e 30% —, sem comprometer a percepção de qualidade por parte dos consumidores.

[the_ad_group id="11688"]

Na América Latina, mais de 99% das famílias compram produtos de marca própria em países como Chile, Colômbia e México. No Brasil, esse número ainda é modesto: apenas 48% dos lares consomem esse tipo de produto regularmente. Ainda assim, o potencial de expansão é evidente, especialmente no varejo de moda, onde marcas próprias representam uma oportunidade de diferenciação e aumento de margem.

Mais do que substituir fornecedores, criar uma marca própria significa definir e conduzir uma proposta de valor: estilo, narrativa, preço, qualidade, canal e, claro, margem. Também é uma forma de reconexão com o consumidor, oferecendo exclusividade e identidade, ativos fundamentais em um mercado comoditizado.

A empresária Karla Silva, sócia da multimarcas BK Concept Store, em Florianópolis, criou a marca própria Bellaguarda em 2024, a partir de sua vivência no setor:

“Minha experiência como sócia-fundadora da BK e como vice-presidente da Almvest me mostrou os principais gargalos enfrentados pelas multimarcas. Estudamos como desenvolver uma marca que atendesse tanto aos desejos da consumidora final quanto às necessidades do lojista, respeitando pilares como markup justo, prazos viáveis, qualidade e marketing consistente. Acreditamos em um mercado mais justo, onde todos ganham, com transparência, inteligência e respeito mútuo.”

D2C: da fábrica ao feed

Outro caminho que ganha força é o Direct to Consumer (D2C), modelo no qual o fabricante vende sua marca diretamente ao consumidor final, sem intermediários. No Brasil, bons exemplos são as empresas Tramontina, Bauducco e Havaianas, que já trilham esse formato em seus respectivos segmentos. Globalmente, o mercado D2C deve atingir entre US$ 186 e US$ 200 bilhões até 2025, segundo a Quick Market Pitch, com destaque para a Ásia-Pacífico, que cresce a taxas superiores a 16% ao ano, conforme dados da Consa Insights.

No setor de moda, o D2C se mostra ainda mais promissor. A possibilidade de lançar coleções sob demanda, com base em dados reais de consumo, e vendê-las diretamente via canais digitais pode transformar o jogo: reduz os estoques, melhora as margens e fortalece o relacionamento com o cliente.

Na Índia, o avanço desse modelo tem sido acelerado. A marca Snitch, referência em fast fashion masculina, passou de operação B2B para D2C em 2020 e, desde então, registra crescimento exponencial, com vendas online e lançamentos frequentes. A LittleBox, voltada ao público jovem, alcançou cerca de US$ 8 milhões em receita acumulada em apenas dois anos. As marcas Virgio e Libas mostram como o contato direto com o consumidor permite testar propostas de valor em tempo real, com ciclos produtivos mais ágeis e decisões orientadas por dados.

No Brasil, marcas do Brás, tradicional polo de confecção em São Paulo, intensificaram suas vendas diretas principalmente após a pandemia, com abertura de lojas próprias, presença em marketplaces e atuação ativa nas redes sociais. O canal direto se tornou uma ferramenta de sobrevivência diante das margens espremidas, ainda que isso tenha gerado atritos com lojistas multimarcas, que agora competem com seus próprios fornecedores.

Consumidores finais “sem marca”: o desejo por acesso direto

A desintermediação também parte do consumidor. Nas redes asiáticas, especialmente na China, cresce o número de pessoas comprando produtos diretamente das fábricas, muitas vezes, sem qualquer intermediação de marca tradicional. Bolsas, roupas e calçados são adquiridos por meio de vídeos virais no TikTok e plataformas como o  Taobao, com a promessa de que, ao eliminar intermediários, o consumidor paga menos e recebe mais.

Esse comportamento se alinha com a filosofia “No Label”, adotada por marcas como a japonesa Muji, que aposta em simplicidade, funcionalidade e ausência de logotipo para atrair um público que rejeita o excesso de branding. O consumo “anônimo”, em que o produto vale por si só, aponta para uma nova mentalidade: mais autonomia, menos status.

Esse fenômeno extrapola a moda. Em polos como Shenzhen, consumidores também compram eletrônicos diretamente das montadoras, muitas vezes sem marcas conhecidas, impulsionados pelo desejo de economia, acesso e praticidade. O acesso direto se impõe como tendência global, mas também como provocação: se é possível comprar direto da fábrica por um terço do preço, qual é, afinal, o verdadeiro valor que uma marca entrega?

O que isso significa para o mercado da moda?

A desintermediação não é apenas mais um canal de venda — é uma mudança estrutural no modelo de negócios.

As indústrias passam a pensar como marcas. Os varejistas se tornam criadores. E os consumidores assumem o papel de coautores do que vestem.

Esse cenário abre oportunidades para:

O risco de perder o foco

Esse é, talvez, o ponto mais crítico desse movimento. A desintermediação, embora poderosa, exige atenção: em um mundo onde o consumidor pode ir direto à fonte, qual é o papel real da marca?

Em um cenário em que cortar intermediários parece uma solução óbvia para ganhar margem, é preciso cuidado para não cair na armadilha da simplificação excessiva. Eliminar etapas pode até reduzir custos no curto prazo, mas sem uma proposta clara de valor, propósito e diferenciação, o negócio corre o risco de perder foco e identidade. Toda marca precisa responder com objetividade: quero ser apenas mais um player brigando por preço ou quero construir algo relevante, com significado e perenidade?

No movimento de desintermediação, a eficiência importa, mas é o posicionamento que define se você será lembrado ou substituído.

Cecília Rapassi é consultora de Negócios na área de Moda e professora de pós-graduação em Fashion Business na Faap.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.

Imagens: Criada por IA e Reprodução

Sair da versão mobile