ChatGPT não é analista: o perigo da falsa competência digital

Há uma epidemia invisível que começa a se espalhar no mundo corporativo: profissionais que utilizam ferramentas de Inteligência Artificial sem realmente entender os dados, a lógica ou o significado por trás deles. Relatórios e apresentações impecáveis à primeira vista, mas que revelam, em poucos minutos de leitura, que quem os produziu não entendeu o que estava dizendo.

É o novo risco da era digital: o empoderamento da ignorância

Recentemente, um cliente pediu ao seu líder de área de vendas que elaborasse uma planilha com indicadores básicos de desempenho: vendas, conversão, ticket médio e churn. O profissional reuniu os dados, mas, em vez de fazer uma análise real, pediu à IA para gerar um relatório com conclusões.

Em segundos, o sistema devolveu um belo relatório com frases de efeito: “O ticket médio caiu devido à perda de foco no pós-venda” e também “A conversão subiu por conta do novo layout do e-commerce”.

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Soa convincente, mas há um detalhe inacreditável: a empresa não tem e-commerce e o profissional sequer revisou esse detalhe antes de compartilhar a brilhante conclusão. Quanto aos demais indicadores, ele também não soube justificar ou explicar a metodologia, a lógica nem as variáveis envolvidas.

Em outro caso, também recente, o profissional trouxe um “laudo” em que pediu ao ChatGPT para avaliar a construção da meta do mês, apontando os riscos de gerar burnout no time de vendas.

Seria cômico se não fosse preocupante: profissionais sustentando posições em castelos de areia e correndo o risco de que decisões importantes sejam tomadas com base em conclusões fabricadas por uma IA que não tem contexto nem senso de causalidade.

A falsa competência digital

Essa prática de delegar à IA o pensamento analítico cria o que chamo de “falsa competência digital”: o profissional parece produtivo, parece técnico, mas, na verdade, perdeu o controle sobre o raciocínio.

E isso já está sendo observado cientificamente. Um estudo publicado na revista Humanities and Social Sciences Communications (Nature, 2023), conduzido com estudantes do Paquistão e da China, mostrou que o uso indiscriminado da Inteligência Artificial está associado a uma perda expressiva da capacidade de tomada de decisão humana: 27,7% dos participantes relataram dependência cognitiva ou “preguiça mental” ao delegar análises à IA.

Outro estudo, AI Tools in Society: Impacts on Cognitive Offloading (MDPI, 2024), aponta um fenômeno semelhante: pessoas que dependem de IA para tarefas analíticas passam a desenvolver menor proficiência em raciocínio independente, confiando demais nas respostas automatizadas, mesmo quando incorretas.

Ambas as pesquisas confirmam o que já se percebe no dia a dia corporativo: quanto mais terceirizamos o pensamento, mais perdemos o domínio sobre ele.

Os riscos para empresas e profissionais

A diferença entre usar e pensar com IA

A Inteligência Artificial pode ser uma parceira extraordinária, desde que o profissional mantenha o protagonismo intelectual.

Usar a IA para estruturar dados, sugerir hipóteses ou aprimorar relatórios é saudável. O problema é delegar o raciocínio.

O verdadeiro diferencial está em quem pensa com a IA, e não por meio dela.

E isso exige domínio dos fundamentos, como entender indicadores, testar hipóteses, validar correlações e aplicar senso crítico sobre cada conclusão gerada.

Boas práticas para o uso responsável de IA

No fim das contas, a Inteligência Artificial não vai roubar seu trabalho, mas quem souber pensar melhor com ela, sim. Os relatórios podem ser gerados em segundos, mas o pensamento crítico não é automatizável.

A Inteligência Artificial está mudando tudo, menos o essencial: a necessidade de pensar. O futuro do trabalho exigirá menos operadores de ferramenta e mais curadores de sentido. Porque, no fim, a IA só é inteligente quando quem a usa também é.

O profissional do amanhã não será definido pela velocidade da entrega, mas pela profundidade do raciocínio.

Cecília Rapassi é consultora de Negócios na área de Moda e professora de pós-graduação em Fashion Business na Faap.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo.
Imagens: IA 

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